Nem sempre, nem nunca. E a procura do equilíbrio, não raras vezes resvala para o exagero. A Polimedicação Crónica do século XXI tem riscos, principalmente para o doente sénior

Em finais do século XIX, a medicina sofreu uma mudança drástica com o aumento acelerado do conhecimento da anatomia, fisiologia e histologia, acompanhada pela evolução técnica dos instrumentos de diagnóstico, dos quais o mais significante foi a descoberta do RX. O microscópio – que já vinha do século XVI permitia ver as profundezas do organismo humano e os micróbios causadores de doenças foram sendo identificados, como o bacilo da tuberculose, que ficou com o nome de Koch, o Nobel que o identificou.

Na viragem do século, Lois Alzheimer identificou as causas da demência senil e estes monstros identificados ainda permanecem entre nós no século XXI, causadores uns, em muitas mortes em países desfavorecidos e outros causadores de grande invalidez na idade da reforma, em países evoluídos e em vias de desenvolvimento. Contudo, foi no primeiro terço do século XX que se iniciaram estudos randomizados baseados na evidência, para a descoberta de medicamentos que neutralizaram os sintomas de doenças já conhecidas, como a epilepsia, doenças infeciosas e inflamatórias, complicações dos acidentes ou distúrbios da mente.

As monstruosas máquinas de enriquecimento rápido, aceleradas desde a revolução industrial, aproveitaram o conhecimento clínico para inundar os mercados, com uma das maiores indústrias mundiais em laboratórios, paredes meias com as máquinas de instrumentos de guerra, atualmente dois dos maiores monstros da economia mundial. Rede bem oleada desde as fontes, com um marketing diferenciado a penetrar nos sistema límbico dos sapiens, rapidamente invadiu os hospitais, centros de saúde e as gavetas da maioria das casas de todos nós, frequentemente doentes ou pelo menos com alguma mazela descoberta no RX, nas análises de rotina ou apenas na imaginação de cada um.

A mortalidade infantil baixou, as doenças infectocontagiosas dos jovens foram controladas e o sapiens médio nunca mais foi para férias sem remédios e as gavetas das casas passaram a ter caixas de pilulas para “o que desse e viesse”.

“Oh Manel, como se chama aquilo da TV que eu gosto para fortalecer os ossos e também ponho na comida do cão? Não te lembras? Então logo vamos estar atentos aos anúncios”. É um exemplo…

Há 2500 anos Hipócrates reuniu informação sobre medicamentos/alimentos em livros e Dioscórides organizou uma farmacopeia no Século I DC. Antes de saberem que os tecidos eram constituídos por células e desconhecendo a existência de bactérias, os tais unicelulares só vistos ao microscópio e que foram os primeiros habitantes do planeta.

E ainda que a maioria das pessoas deste século não saiba que essas mesmas bactérias são nossos comensais privilegiados, temos triliões nos intestinos, alojados ao lado dos neurónios do segundo cérebro e que – felizmente – decompõem com eficiência os alimentos que entram no sangue e são regularmente distribuídos por todos os órgãos e tecidos. As mesmas bactérias que, quando se irritam, provocam infeções e são combatidas com as armas do nosso sistema imunitário ou com as pilulas e as injeções fabricadas naqueles laboratórios, que fazem tantos dólares como o número de bactérias alojadas no intestino.

Para imaginar o volume dos “bichos invisíveis”, a sua biomassa global é bem superior à biomassa conjunta de todos os animais e plantas deste planeta. Tê-los como amigos é muito bom, mas tê-los como inimigos só combatendo acérrima e implacavelmente com antibióticos, os tais que só apareceram depois de 1920. Há um século apenas, permitindo que as infeções pulmonares, cerebrais e outros sejam em grande parte controladas.

Desde o ponto de equilíbrio até ao exagero vai um passo e a PMCS 21 (Polimedicação Crónica do século 21) passou de tratamento ou apenas prevenção, para doença nova viciante, com mais riscos que benefícios. A consagrada e mundialmente conhecida revista Cochrane, que faz a avaliação da base de dados dos estudos em medicamentos, diz em livro, pela voz de um dos seus distintos colaboradores, que muitíssimos poucos doentes beneficiam da profusão de remédios que tomam em simultâneo sendo os riscos, mas sobretudo para o doente sénior, bem maiores do que os benefícios.

O não acompanhamento ou acompanhamento deficiente da polimedicação crónica PMCS 21 culmina muitas vezes em maior número de quedas acidentais, com fraturas da coluna, da bacia ou do colo do fémur, muitas passíveis de cirurgia com incapacidade e mortalidade altas.

Quando as drogas envolvidas contêm aceleradores ou inibidores do Sistema Nervoso Central (SNC), quadro que é bastante comum na maioria das polimedicações, as perturbações sensoriais e motoras agravam o desempenho cognitivo, bem como a motricidade dos mais velhos, agastados pelo deficiente desempenho das atividades da vida diária.

A regra para PMCS 21 deve ter em conta a responsabilidade clínica nas prescrições, com a aplicação do consentimento informado, vigente no código de deontologia português e informação do prescritor, sob os riscos envolvidos em efeitos secundários, habituação, agravamento de sintomas e qualidade de vida a médio prazo.

Um cozido à portuguesa com 2500 calorias regados com resveratrol tinto e acabar com um bagaço para remoer e umas gotas de bagas de Santo Inácio para a flatulência pode ser razoável uma vez, mas para um sénior de 75 ou mais anos todas as semanas…, só com um avultado seguro de saúde a favor dos netos e missa todos os domingos.

Raimundo Fernandes
(Médico, Neurocirurgião)

Deixar um Comentário