É o coração ou o cérebro que dita o fim da vida? No início, era a paragem cardíaca, mas a ventilação artificial, a massagem cardíaca e a respiração boca-a-boca conseguiram reverter e “ressuscitar” o que se julgava perdido para a morte. O que era tido como certo, deixou de o ser e foi a função cerebral que mudou conceito

Historicamente, as diversas tentativas de definir o momento exato da morte sempre foram problemáticas. Desde que Galeno, em 6 a.C., determinou que era o coração (devido a descarga simpática do sistema nervoso autônomo) o responsável pela alma e as emoções, a humanidade correlaciona a morte à paragem da contração cardíaca.

A título de curiosidade, alguns dos testes usados ao longo do tempo consistiam na colocação de um espelho junto às vias aéreas superioras que, caso não embaciasse, levava a concluir-se que a função ventilatória tinha cessado. Para além de espelhos, também chamas ou velas foram usadas para o mesmo efeito, sempre com o pressuposto de que na presença de qualquer movimento de ar provocado pela ventilação pulmonar, a chama ficaria trémula.

Só em 1846, a Academia de Ciências de Paris aceitou que a morte significava a ausência de respiração, de circulação e de batimentos cardíacos. No início, era observando se o indivíduo respirava ou não que se determinava se estava vivo ou morto. Depois, com o aparecimento do estetoscópio, a existência ou não de batimentos cardíacos passou a ser determinante.

Perante a tafofobia (fobia que se caracteriza pelo medo de ser enterrado vivo ) existente em 1820 nos EUA, foi criada a Society for Prevention of Premature Burial, que pretendia prevenir a possibilidade de enterros prematuros, sociedade essa que persistiu até 1923. Em Londres, a Association for the Prevention of Premature Burial, fundada em 1896, efetuou campanhas a defender a melhoria dos métodos de certificação da morte e a construção de caixões com dispositivos de sinalização – como campainhas – que poderiam ser ativados, caso a pessoa fosse declarada morta e enterrada por engano.

Contudo, após a invenção da ventilação artificial, a respiração boca-a-boca e da massagem cardíaca externa, nos anos 50 do século XX, foi possível, em alguns casos, reverter a paragem cardíaca e respiratória. E o aparecimento dos ventiladores e das unidades de cuidados intensivos na mesma época, tornaram possível manter artificialmente a função cardiorrespiratória. Assim, o que era tido como certo, passou a não o ser. Mas do desenvolvimento da reanimação cardiorrespiratória e das técnicas e dispositivos de suporte da vida, resultaram que alguns doentes mantinham a função respiratória artificialmente, mas perderam totalmente as funções cerebrais.

Pela definição cardiorrespiratória de morte estes doentes estavam vivos, podendo potencialmente manter-se indefinidamente nestas condições. Esta manutenção de indivíduos, cuja função cerebral se tinha irremediavelmente perdido, levantaria problemas legais, éticos, psicológicos e económicos. Tanto para profissionais como para familiares, criaram-se situações insustentáveis, algumas das quais ficaram sobejamente conhecidas e deram origem a intensos debates públicos e dramas judiciais.

Foi nessa mesma época que assistimos ao desenvolvimento das técnicas de transplantação, com a consequente necessidade de órgãos viáveis, que têm mais probabilidade de serem obtidos se forem extraídos de um corpo funcionante. De facto, nos anos 50 do século XX, começaram a fazer-se os primeiros transplantes renais e no final dos anos 60 do mesmo século foi efetuado com sucesso o primeiro transplante cardíaco.

A evolução da técnica e da ciência exigiram alterar o conceito de morte, que já não estava de acordo com a nova realidade, colidindo muitas vezes com o bom senso e com a necessidade de beneficiar outras pessoas com os novos desenvolvimentos da medicina.

É de Mollaret e Goulon, em 1959, a designação de “coma ultrapassado”, atribuído aos doentes que tinham perdido as funções cerebrais, incluindo as vegetativas. Em 1968, a Comissão Ad Hoc da Harvard Medical School propôs que fosse declarada a morte de um indivíduo em coma irreversível, antes de se desligarem os meios de suporte. Aqui a designação foi de coma irreversível, em vez de coma ultrapassado, e foi descrito como um estado de não reatividade, sem movimento, respiração ou reflexos, e um eletroencefalograma plano.

Com este novo conceito, pretendia-se que os doentes que tinham perdido irreversivelmente a atividade cerebral, portanto, sem hipóteses de sobreviver sem suporte intensivo, não fossem mantidos indefinidamente ligados a um ventilador, sem que tirassem disso algum benefício. O caminho da transplantação de órgãos ficava facilitado.

Portugal adotou como critério a morte do tronco cerebral, conceito e definição que vem sendo aplicada desde 1994. Ou seja, a morte é decretada quando há uma paragem irreversível do funcionamento do organismo como um todo, sendo o todo maior que a soma das partes. A definição de organismo como um todo é feita em termos fisiológicos: com controlo da respiração, da temperatura, do equilíbrio hidra eletrolítico, da consciência controlo autonómico, regulação neuro-endócrina, comportamento sexual e fome. O organismo como um todo poderia funcionar mesmo sem alguns subsistemas.

Assim, para se decretar a morte cerebral é necessário documentar a paragem irreversível do funcionamento de todo o encéfalo.

Condições Prévias:

Para o estabelecimento do diagnóstico de morte cerebral é necessário que se verifiquem as seguintes condições prévias:

  1. Conhecimento da causa e irreversibilidade da situação clínica, como seja um traumatismo craniano grave;
  2. Estado de coma com ausência de resposta motora à estimulação dolorosa na área dos pares cranianos;
  3. Ausência de respiração espontânea;
  4. Constatação de estabilidade hemodinâmica e da ausência de hipotermia, alterações endócrino-metabólicas, agentes depressores do sistema nervoso central e ou de agentes bloqueadores neuromusculares, que possam ser responsabilizados pela supressão das funções referidas nos números anteriores.

Procedimentos:

  1. O diagnóstico de morte cerebral implica a ausência na totalidade dos seguintes reflexos do tronco cerebral:
    • Reflexos fotomotores com pupilas de diâmetro fixo;
    • Reflexos oculocefálicos;
    • Reflexos oculovestibulares;
    • Reflexos corneopalpebrais;
    • Reflexo faríngeo.
  2. Realização da prova de apneia confirmativa da ausência de respiração espontânea.

Requerimentos:

A verificação da morte cerebral requer:

  1. Realização de, no mínimo, dois conjuntos de provas com intervalo adequado à situação clínica e à idade;
  2. Realização de exames complementares de diagnóstico, sempre que for considerado necessário;
  3. A execução das provas de morte cerebral por dois médicos especialistas (em neurologia, neurocirurgia ou com experiência de cuidados intensivos);
  4. Nenhum dos médicos que executa as provas poderá pertencer a equipas envolvidas no transplante de órgãos ou tecidos e pelo menos um não deverá pertencer à unidade ou serviço em que o doente esteja internado.

Gonçalo Costa
(Médico, Neurocirurgião)

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