Para a dor de costas e nos últimos anos, tem vindo a crescer uma panóplia de tratamentos, mais ou menos invasivos e mais ou menos complexos. A cirurgia da coluna acompanhou essa evolução, mas a intervenção cirúrgica com os ditos “parafusos” pode aumentar a probabilidade de o doente vir a necessitar de novas cirurgias, em consequência da primeira, o que – em teoria – é ótimo para qualquer “negócio” 

Numa determinada fase da vida, qualquer um de nós pode vir a sofrer de dor de costas. E é isso que acontece em 83% das pessoas. O pior é que em 36% dos casos, essa dor de costas mantém-se pelo menos durante quatro semanas. E, se a pessoa fumar, as probabilidades aumentam, seja a de ter dor de costas, seja de vir a ter alterações na coluna.

Mas, alterações na coluna quase todos temos ao fim de alguns anos. É certo que nem todos se queixam, ou pelo menos, nem todos têm sintomas (dor). A ressonância magnética ajuda a demonstrar isso mesmo e, se compararmos as alterações que as imagens revelam de um grupo de indivíduos assintomáticos (sem sintomas, queixas, dor), com os resultados de um outro grupo que revela sintomas, as diferenças podem surpreender. Assim:

Alterações nos indivíduos assintomáticos:

  • 3 a 63% com protusões dos discos vertebrais
  • 0 a 24% com extrusões dos discos vertebrais
  • 20 a 83% com redução de intensidade de sinal dos discos vertebrais
  • 3 a 56% com diminuição altura dos discos vertebrais
  • 6 a 56% com fissuras anulares nos discos vertebrais
  • 8 a 19% com nódulos de Schmorl

Alterações nos indivíduos sintomáticos:

  • 0 a 79% com protusões dos discos vertebrais
  • 1 a 55% com extrusões dos discos vertebrais
  • 9 a 86% com redução de intensidade de sinal dos discos vertebrais
  • 15 a 53% com diminuição altura dos discos vertebrais
  • 15% com fissuras anulares nos discos vertebrais
  • 6 a 79% com nódulos de Schmorl

A leitura atenta destes dados ajuda a perceber como a dor de costas pode ser facilmente transformada numa área de negócio, existam ou não sintomas. Claro que, em paralelo, a medicina evolui, mediante a experimentação e aplicação de novas tecnologias e o cirurgião quer experimentar e desenvolver essas técnicas, com exercício e treino continuado. Não há bela sem senão e a evolução das técnicas cirúrgicas também encerra – em si mesma – o risco de focalização na técnica e não na doença da pessoa.

Para a dor de costas e nos últimos anos, tem vindo a crescer uma panóplia de tratamentos, mais ou menos invasivos e mais ou menos complexos. Medicinas alternativas, tratamentos percutâneos, fisioterapia, manipulações e cirurgias mais ou menos complexas e/ou mais ou menos assistidas por tecnologia. O “estado da arte” é heterogéneo.

No caso dos cirurgiões de coluna, o próprio sistema de comparticipação favorece a maior agressividade dos procedimentos, já que – teoricamente – as cirurgias com aplicação de material de instrumentação (vulgo “parafusos”) representam- em média – um maior retorno monetário para a equipa cirúrgica. Nos Estados Unidos da América a equipa cirúrgica receberá mais 25% de honorários, quando aplica esse material de instrumentação que, no caso da coluna, serão “parafusos”. 

Em Portugal, é preciso fazer contas e esta continua a ser uma área cinzenta. As regras não são claras e é preciso lidar com o medo da morte ou de ficar numa cadeira de rodas, o medo da dor; mas também combater a ideia de que uma cirurgia não tem complicações e que será um parafuso que vai solucionar toda e qualquer dor e pôr tudo no lugar. 

Ora a cirurgia não é nem uma panaceia nem remédio santo, sendo que, no caso da coluna, até é por vezes uma forma de aumentar a probabilidade de o doente vir a necessitar de novas cirurgias, em consequência da primeira, o que – em teoria – é ótimo para qualquer “negócio”. 

Dada a facilidade com que cada vez mais se propõem cirurgias à coluna (os procedimentos são cada vez mais seguros, praticados por pessoas com experiência e assistidos por tecnologia cada vez mais evoluída e singela na sua aplicação…), as possibilidades de sucesso económico são cada vez mais apelativas. Mas, quando um determinado tratamento é aplicado de forma indiscriminada e com critérios duvidosos acaba por se assistir à sua descredibilização progressiva. Por isso cada vez mais estudos, que comparam os dados obtidos 1, 9, 10 anos depois da cirurgia, chegam à conclusão de que os resultados no grupo de doentes operados e não-operados são semelhantes… 

Alguns países difundem os registos nacionais de cirurgia da coluna, levantando a possibilidade da avaliação de resultados ao longo do tempo por auditorias externas que apresentam – como não poderia deixar de ser – resultados diferentes dos apregoados pelos cirurgiões.

A cirurgia tem riscos (todo e qualquer ato cirúrgico) e, não é legítimo dizer que “nunca ninguém morreu” de uma cirurgia à coluna. Os estudos internacionais publicados revelam que a mortalidade após 90 dias de intervenção é de 0,29%, com uma taxa cumulativa de 1,93% aos 3 anos, embora em muitos casos se deva aos efeitos do uso de medicação para o tratamento de dor ou complicações pós-operatórias. 

As dores de costas e outros problemas decorrentes e associados devem ser primariamente prevenidas com a adoção de comportamentos de vida saudáveis, como sejam a prática de exercício físico adaptado à condição de cada um, a abstenção tabágica, cuidados com os pesos, posturas e esforços ou movimentos indevidos, como o sobejamente conhecido uso de mochilas (demasiado pesadas) pelos jovens, mergulhos em locais e condições de perigo e a cada vez mais comum prática do uso continuado do telemóvel em posições viciosas, etc.

O tratamento da dor deverá ser – tanto quanto possível – dirigido às causas, mas privilegiando sempre de início as medidas não-cirúrgicas, não podendo a violência da cirurgia, que é um tratamento definitivo, com consequências inevitáveis a longo prazo e podendo sempre acarretar a necessidade de subsequentes procedimentos, ser medida pelo tamanho do corte. Apenas nos casos em que se verifica comprovadamente dano neurológico, como falta de força, perturbações urinárias, fecais ou outras, deve ser considerada como tratamento urgente e primário.

A cirurgia é um ato invasivo e irreversível!

Gonçalo Costa
(Médico Neurocirurgião)

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