A partir de um fármaco amplamente utilizado e conhecido, o paracetamol, percebemos facilmente que os vários perfis genéticos que existem na população portuguesa podem determinar a necessidade do medicamento, a sua eficácia e o risco de toxicidade. A Medicina de Precisão já começa a ajudar a gerir os tratamentos à medida

A complexidade bioquímica do corpo humano revelada pela ciência tem consequências importantes a vários níveis, nomeadamente na interação com o ambiente, com os alimentos e com diversos tipos de substâncias, como os medicamentos. De facto, o funcionamento do organismo humano depende de milhares de reações químicas que decorrem continuamente em todas as células vivas. A velocidade e a eficiência desse funcionamento são influenciadas pelas características genéticas, exercício físico, estado de saúde e condições do meio (incluindo micro-organismos, poluentes, herbicidas, pesticidas, toxinas, aditivos alimentares, medicamentos, álcool, drogas de abuso, fumo de tabaco, alimentos), que também afetam a expressão genética (epigenética). 

A variabilidade genética individual é determinante nessa interação, influenciando a forma como o organismo responde aos diversos estímulos ou substâncias exógenas acima mencionadas, também denominadas xenobióticos – substâncias estranhas ao organismo, que têm de ser metabolizadas para serem eliminadas, no sentido de evitar que se acumulem no organismo e se tornem tóxicas e contribuindo para a diversidade de riscos para a doença e respostas aos tratamentos.

O entendimento dos mecanismos subjacentes a essas respostas é essencial para a compreensão da heterogeneidade no modo como o corpo humano funciona, bem como para aumentar a precisão na identificação de fatores de risco para doenças ou de associação à eficácia dos tratamentos, prevenindo a toxicidade ou efeitos adversos.

No sentido de ilustrar estes conceitos, consideremos o exemplo de um fármaco amplamente conhecido e utilizado pela generalidade das pessoas, frequentemente usado sem receita médica para tratar a dor e a febre, o acetaminofeno ou paracetamol.

Diferentes dosagens

Se fizéssemos um inquérito na população, provavelmente cerca de 2/3 das pessoas já tomaram este medicamento em pelo menos uma ocasião. Em geral, a dose é ajustada à idade (eventualmente ao peso nas crianças). O tempo necessário para a eliminação é cerca de 4 a 8h, sendo maior nas crianças, nos idosos e nos prematuros (mais de 20h). No entanto, inclusivamente na mesma faixa etária, nem todos necessitam da dosagem idêntica e nem todos apresentam os mesmos riscos de efeitos secundários. O efeito adverso mais conhecido é a hepatotoxicidade (falência do fígado), com perigo de vida se o tratamento não for interrompido. Habitualmente é associado a sobredosagem, mas também pode ocorrer em associação a particularidades genéticas.

Analisando em detalhe o percurso do acetaminofeno, inicia-se pela ingestão oral, com um copo de água. É depois absorvido no intestino e entra na circulação sanguínea, entrando no f ígado pela veia porta. O fígado atua como uma refinaria no nosso corpo. Nos hepatócitos, células com atividade metabólica intensa no fígado, as enzimas (“unidades de transformação”), catalisam reações para degradar os xenobióticos e evitar a sua acumulação tóxica. No caso do paracetamol, são conhecidas cerca de 8 enzimas que intervêm na sua metabolização e são codificadas por genes que possuem variantes influenciadoras da atividade, ou seja, as enzimas podem ter uma atividade rápida, lenta ou intermédia, dependendo das características genéticas.

Eficácia e riscos

Assim, na população geral existem vários perfis genéticos associados a essas atividades que vão determinar a necessidade de medicamento, a sua eficácia e o risco de toxicidade. Por exemplo, se as enzimas forem muito lentas a degradar um medicamento, é necessária uma dose mais baixa para atingir a eficácia terapêutica, uma vez que a quantidade em circulação vai ser superior, devido à degradação mais lenta. O contrário acontece quando as enzimas são rápidas na sua ação. Quando há várias enzimas a participar num processo, umas podem ser lentas, outras rápidas e outras intermédias. O resultado final surge da ação concertada de todas as atividades. O grande objetivo da metabolização de xenobióticos é transformá-los em metabolitos hidrossolúveis, que possam ser eliminados pela urina ou pelas fezes (via bílis).

No caso do acetaminofeno, destacam-se duas enzimas pela sua importância metabólica: a CYP2E1, que é responsável no organismo humano, pela produção de N-acetil-p-benzoquinona-imina (NAPQI), o metabolito responsável pela hepatoxicidade e a Glutationa-S–transferase, que conjuga o NAPQI com glutationa, um antioxidante naturalmente produzido nos hepatócitos, ou com cisteína (aminoácido natural) ou N-acetil-cisteína (suplemento destoxificante), transformando-o num metabolito inofensivo, que é eliminado pela urina. Se o gene que codifica a Glutationa-S–transferase tiver variantes genéticas que tornam a sua atividade lenta, o risco de hepatoxicidade pode ser maior.

No entanto há que ter em conta diversos fatores, pois esta é só uma peça do puzzle. Como curiosidade, refira-se que o etanol (componente bioativo das bebidas alcoólicas) também é metabolizado pela enzima CYP2E1. Este tipo de enzimas é indutível, ou seja, na presença das substâncias em que atuam, formam-se mais enzimas para aumentar a capacidade de destoxificação. Assim, no caso de uma pessoa que habitualmente consuma grandes quantidades de álcool, a quantidade de NAPQI formada é superior e, portanto, tem maior risco de hepatotoxicidade, adicionando o facto de o álcool causar diminuição da glutationa disponível para destoxificar NAPQI. É preciso ter atenção aos consumos e às misturas de substâncias, que podem resultar em problemas graves para a saúde.

Embora ainda não possa ser aplicada de forma generalizada, a Medicina de Precisão já é uma realidade nos nossos dias e contribui de forma muito significativa para a melhor gestão dos tratamentos e prevenção de efeitos adversos ou mesmo de patologias, tendo em conta a informação genética individual, ou seja, dos “tratamentos à medida”.

Manuela Grazina
Professora na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, Investigadora, Comunicadora de Ciência e Mentora Científica

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