Somos campeões no consumo, com lugares cimeiros na Europa e no Mundo. Acreditamos que só assim se resolve o problema do distúrbio do sono. Não é verdade. Ignoramos os riscos e os efeitos indesejados
Não há dúvida de que os portugueses dormem mal e, ironicamente, também é o povo da Europa que mais consome substâncias para dormir. A situação já não é de agora. Quando o sono não aparece, recorrem aos medicamentos calmantes ou suplementos naturais que, num toque de magia, os fará “apagar e adormecer num sono profundo”….
Os psicofármacos mais prescritos em Portugal são as benzodiazepinas, uma classe de fármacos com ação ansiolítica, sedativa e hipnótica, amplamente utilizada no tratamento de perturbações de ansiedade e de perturbação do sono e alguns ocupam mesmo o lugar da segunda medicação mais popular em todo o mundo.
Os números são assustadores. Em 2023, o Infarmed registou vendas de mais de dez milhões de embalagens de ansiolíticos, sedativos e hipnóticos, números que colocam Portugal como o terceiro país do mundo (atrás da Hungria e Uruguai) e o primeiro da Europa, com os maiores consumos. No ano anterior, em 2022, o nosso país registou igualmente o segundo maior consumo do mundo de um hipnótico não benzodiazepínico, também utilizado para “tratar” a insónia. Neste caso específico e à frente de Portugal, está apenas o Uruguai.
O certo é que a utilização excessiva e inadequada de benzodiazepinas e de hipnóticos não benzodiazepínicos, ambos para – supostamente – tratarem os distúrbios do sono, é um problema preocupante de saúde pública. É que estes psicofármacos não são de todo a solução para o problema de sono.
Quatro semanas no máximo
Salvo algumas situações médicas específicas, a maioria das pessoas necessita deste tipo de medicamentos, apenas por curtos períodos de tempo. As normas da Direção Geral da Saúde são muito claras, preconizando para o tratamento da insónia crónica, e se os sintomas assumem carácter patológico, o uso de benzodiazepinas, num período máximo de 4 semanas, incluindo o período de descontinuação. Não devem, portanto, ser utilizadas por rotina, no tratamento de insónias ligeiras ou moderadas e por períodos prolongados.
As benzodiazepinas introduzidas na prática clínica nos anos 60, são substâncias que atuam no sistema nervoso central, como agonistas dos recetores GABAA (reconhecidamente envolvidos na fisiologia do sono), diminuindo a excitabilidade celular, tendo por isso um efeito calmante e facilitador do início e manutenção do sono. Porém não estão isentas de riscos. As reações adversas do uso continuado de benzodiazepinas são dose-dependente e relacionadas com a duração do tratamento e semivida do fármaco.
Os riscos e os efeitos indesejados mais frequentes e comuns às várias benzodiazepinas podem ser físicos (tonturas, vertigens, náuseas, sonolência, visão dupla ou enevoada, dor de cabeça, fadiga, fraqueza muscular, tremores, obstipação, alteração do apetite e dificuldades na condução de veículos); psicológicos
(ansiedade, depressão, irritabilidade, agitação, agressividade, alucinações, delírios, dificuldades de aprendizagem, dependência) e neurológicos (amnésia anterógrada, diminuição da memória, confusão, desorientação, perturbações do discurso, diminuição da capacidade de reação, redução do estado de alerta e ataxia). Os efeitos secundários adversos são ainda potenciados pelo uso concomitante de outras substâncias psicoativas, como o álcool. Em alguns casos, pode haver também o risco de mortalidade tanto por overdose, como por retirada abrupta do fármaco benzodiazepínico.
Os idosos são um dos grupos de maior risco, por alterações farmacocinéticas associadas ao envelhecimento (por exemplo o aumento da semivida), sendo mais sensíveis aos efeitos indesejáveis das benzodiazepinas, como sonolência diurna, confusão mental, alterações de raciocínio, amnésia anterógrada, diminuição das funções cognitivas, depressão, ataxia e aumento do risco de quedas e fraturas.
Uma especial preocupação é que tratamentos mais prolongados com benzodiazepinas e sem acompanhamento médico podem induzir situações de abuso, fenómenos de tolerância e dependência física e psíquica, que ocorrem de forma transversal em todos os grupos etários e em apenas algumas semanas após o início do tratamento.
A dose faz o veneno
A tolerância ao fármaco acontece porque a sensibilidade dos recetores pode ficar reduzida havendo uma diminuição da resposta, o que leva à crescente necessidade de aumentar a dose, para manter os mesmos efeitos. Nas palavras de Paracelso, médico do século XVI, considerado o pai da toxicologia, “a dose faz o veneno”, ou seja, a dose certa diferencia um veneno de um remédio, porque o uso em grandes quantidades ou o mau uso pode ser tóxico.
A dependência de uma benzodiazepina está associada à dose e ao tempo de administração, e a grande maioria das pessoas usa este tipo de medicamentos há vários meses ou até anos. Por outro lado, o risco de dependência é maior, especialmente em benzodiazepinas com semivida curta e com a utilização concomitante de várias benzodiazepinas.
Dependência física é quando o corpo estando tão habituado ao efeito da benzodiazepina, já não funciona tão bem sem esse fármaco, ou seja, poderá sentir sintomas de abstinência quando a administração é interrompida. Nesse caso, os sintomas sentidos, são exatamente os efeitos inversos àqueles que o consumo da substância provoca. É por isso que a interrupção abrupta do uso de uma benzodiazepina provoca insónia, ansiedade e agitação.
Dependência psíquica ou emocional significa que a pessoa passa a acreditar que só conseguirá dormir se tomar esse medicamento, tornando difícil o abandono dessa substância. Nesta linha, podemos afirmar que o seu consumo repetido provoca na pessoa um incontrolável desejo de usá-la, pela satisfação que produz. Assim, além da insónia, uma perturbação do sono, acresce ainda o diagnóstico de uma perturbação mental, a Perturbação de Uso de Substâncias. Porque já somos todos toxicodependentes e reféns dos medicamentos para dormir…
Na maioria dos casos, estima-se que 20% a 50% das pessoas com consumo prolongado de benzodiazepinas venham a manifestar sintomas de abstinência, indicando a presença de dependência da substância. No caso de abstinência abrupta, após o uso prolongado de benzodiazepinas e em doses elevadas, pode surgir uma síndrome de privação, muito semelhante à abstinência de álcool. Os sintomas de privação variam em intensidade, desde ligeiros (pesadelos, insónia, ansiedade) a graves (alterações da perceção, psicose, hiperpirexia e convulsões que podem ameaçar a vida).
Nos braços de Morfeu
Sendo estes fármacos, muitas vezes utilizados como “automedicação”, desejando-se dormir e cair nos braços de Morfeu, o certo é que o sono com benzodiazepinas não é um sono fisiológico. Apesar de aumentarem o tempo total de sono e a pessoa, efetivamente, dormir mais horas, as benzodiazepinas alteram a fisiologia normal do sono e diminuem a sua qualidade, promovendo a diminuição do sono profundo e do sono REM, ambos essenciais para a nossa saúde e bem-estar.
No sono profundo, ou sono de ondas lentas, ocorrem importantes processos de regeneração e reparação celular, fortalecimento do sistema imunológico, consolidação da memória e libertação de hormonas essenciais para o crescimento e recuperação do corpo. Já o sono REM tem um papel fundamental na regulação emocional, aprendizagem, consolidação da memória e recuperação do sistema nervoso central. Se quer ter uma vida saudável, equilibrada e feliz, tem de dormir bem. Portanto, pense melhor, se quer continuar a “dormir” com estes medicamentos.
Mais recentemente, nos anos 90 surgiram fármacos análogos das benzodiazepinas, quimicamente diferentes destas, mas que atuam no mesmo recetor (GABAA), contudo com maior seletividade, ao terem afinidade de ligação específica para a subunidade alfa 1. Deste modo, as drogas Z ou hipnóticos não benzodiazepínicos, tendem a ter menos efeitos adversos que as benzodiazepinas.
A única “vantagem” em relação às benzodiazepinas é que não provocam alterações na estrutura do sono, contudo, não são de todo isentos de efeitos adversos: alterações cognitivas (diminuição da atenção e da memória, confusão), sonolência diurna, dores de cabeça, tonturas, náuseas, diarreia, mialgias, cansaço, infeções respiratórias e insónia rebound. Mais preocupante ainda, estes hipnóticos não benzodiazepínicos têm sido amplamente associados a casos de amnésia, alucinações e parassónias (comportamentos anormais involuntários durante o sono), como sonambulismo (deambulação durante o sono) e perturbação alimentar relacionada com o sono (ingestão involuntária de alimentos e bebidas durante o sono).
Nos idosos, o uso de uma dose cumulativa alta pode ser associado a um risco aumentado de doença de Alzheimer. E tal como as benzodiazepinas, estes outros hipnóticos têm uma ação aditiva muito forte, com potencial para causar dependência física e emocional grave, tolerância e sintomas de abstinência. Além disso, tanto as benzodiazepinas como os hipnóticos não benzodiazepínicos podem agravar doenças como a Síndrome de Apneia do Sono e outras perturbações respiratórias, nomeadamente a Doença Pulmonar Obstrutiva Crónica.
Como podemos constatar, o uso indiscriminado de hipnóticos (sejam ou não da família das benzodiazepinas) com elevado potencial de abuso e dependência, quando utilizados a longo prazo, podem prejudicar a saúde e desenvolver uma doença mental, a perturbação de dependência de sedativos-hipnóticos.
Assim, o seu uso requer diversas precauções, uma vez que estes fármacos apenas se demonstram seguros e eficazes para o tratamento da insónia a curto prazo. E tão importante quanto o problema da insónia é a forma como se vai tratar.
Dormir é meio sustento
Se só consegue dormir à base de medicamentos ansiolíticos e hipnóticos, os calmantes não são a solução universal e adequada para todos os problemas de sono. Mas atenção, se toma benzodiazepinas há vários meses ou até há vários anos, nunca suspenda abruptamente a sua administração, dado que os sintomas de abstinência indesejáveis, mais ou menos graves podem surgir.
A desabituação desses fármacos não é fácil, mas é possível, devendo ser individualizada e adaptada a cada pessoa, sendo recomendada uma redução progressiva, durante semanas a meses até à suspensão, com consultas médicas de seguimento, para apoio motivacional, monitorização, e reavaliação dos sintomas.
Por vezes pode ser necessário o uso temporário e combinado de outros fármacos durante o desmame.
Em todo este processo a adoção de bons hábitos de higiene do sono é indispensável, de forma a permitir trazer equilibro ao nosso corpo e à nossa mente, e possibilitar a indução do sono naturalmente. Porque por trás da epidemia do consumo de fármacos sedativos e hipnóticos está o desejo de controlar o sono rapidamente e com o mínimo esforço possível. Admite-se que o mais fácil é tomar um calmante para dormir e beber um café para acordar.
Em pequeninos, ouvíamos dos nossos sábios e experientes avós a frase “Dormir é meio sustento”, e a ciência já comprovou isso mesmo.
Joana Serra
(Médica, Psiquiatra, com Competência em Medicina do Sono)
«Nem papoila, nem mandrágora,
Nem todos os xaropes soporíferos do mundo
Poderão devolver-te o doce sono,
De que gozavas ontem.»
W. Shakespeare; Otelo, Acto III, Cena iii
O meu pai sofre imenso com problemas do sono, com noites consecutivas sem dormir.
ReplyComo devo fazer para marcar uma consulta para ele?
Muito grata pela atenção dispensada.
Graça
Bom dia,
ReplySerá contactada pelos nossos serviços administrativos, para agendar a consulta.