Uma simples experiência gráfica permite-nos compreender o funcionamento do cérebro humano, mas também as suas vulnerabilidades. Desenhar o tempo num relógio de ponteiros pode revelar muito mais do que a hora registada. As características típicas da Doença de Alzheimer ficam impressas quando se tenta desenhar as 11h10

As demências são doenças que se caraterizam por apresentarem um declínio cognitivo, com manifestações nas áreas do cérebro, responsáveis pela memória dos objetos (lobo occipital), a interpretação do espaço (lobo parietal direito), a linguagem e os códigos numéricos (lobo temporal esquerdo) ou gizar um plano de execução (lobos frontais). 

O Teste do Desenho do Relógio acaba por revelar o declínio destas mesmas funções, mas também a forma como a doença evolui. Criado na década de 50, por Battersby, o teste foi concebido para avaliar défices visuais e espaciais, associados a lesões do hemisfério cerebral direito. A potencialidade deste teste acabou por se adaptar a doentes com suspeita de demência, tornando-se num dos testes mais breves e mais divulgados no rastreio de demência. 

A popularidade do teste fez com que se começassem a utilizar instruções e métodos de avaliação muito diferentes e, consequentemente, com interferências e conclusões dificilmente comparáveis. Discrepâncias que acabaram por ser colmatadas com a aplicação de métodos estandardizados e, neste momento, as instruções estão sempre pré-definidas e são sempre as mesmas, ao mesmo tempo que se usam critérios de avaliação baseados em sistemas de cotação quantitativos e qualitativos, simples e fáceis de aplicar.

Hoje, a metodologia em voga utiliza como instruções o pedido para “desenhar um círculo, colocar os números e indicar as 11h10”. Estas instruções são transmitidas oralmente

(invocando a capacidade de memória das pessoas para manter a informação dada no início), sendo também omitida, deliberadamente, a palavra “ponteiro”, porque constituiria uma pista para o conhecimento semântico do relógio. 

O horário que é solicitado (11h10) também não foi escolhido por acaso, porque é o resultado deste desenho que irá permitir comparar a utilização ou não dos campos direito e esquerdo do relógio, revelando a referida manifestação de neglect, ou seja a desvalorização dos estímulos ao lado esquerdo do corpo e do espaço. O desenho do relógio com os ponteiros nas 11h10 implica a colocação dos ponteiros nos dois quadrantes superiores, áreas processadas visualmente pelos lobos temporais e que são regiões-alvo na demência.

O teste do desenho do relógio ainda irá permitir avaliar a coordenação conjunta das capacidades percetivas, executivas e de abstração, sendo que a falta desta coordenação conjunta se manifesta caracteristicamente por um erro de desenho designado por stimulus bound – o resultado do desenho será um horário em que os ponteiros estão nas 10h50, em que o ponteiro dos minutos aponta para o número “10”, em vez do “2” e esta é uma característica típica da Doença de Alzheimer.

Relativamente à avaliação dos erros cometidos no Teste do Desenho do Relógio, seguimos o sistema de cotação que valoriza a integridade do círculo, a colocação e o tamanho (diferente) dos ponteiros e a colocação e a sequenciação dos números. É a aplicação deste sistema que tem demonstrado uma elevada capacidade para distinguir os doentes com Doença de Alzheimer de pessoas sem demência.

A investigação realizada pelo mundo também tem demonstrado que o padrão de desempenho no teste não é exclusivamente modelado pela doença, mas também é muito influenciado pelas capacidades inatas das pessoas e, sobretudo, pela sua aprendizagem ao longo da vida. E de entre estas, a aprendizagem escolar e o nível escolar atingido parece ser a mais revelante. Facilmente se compreende que um doente iliterato, que nunca frequentou a escola, tenha uma grande dificuldade e até incapacidade em desenhar um relógio.

Para que o Teste do Desenho do Relógio pudesse ser utilizado adequadamente como prova neuro psicológica ou instrumento de rastreio de défice cognitivo no nosso país foi necessário desenvolver estudos na comunidade, procurando caraterizar o tipo de desempenho de indivíduos saudáveis, definir as suas condicionantes e, a partir destas premissas, propor dados normativos (pontuações de corte que permitem distinguir os indivíduos com desempenhos normais dos que revelam défice cognitivo.

Este estudo já foi feito, e resultou de uma colaboração entre instituições (Faculdades de Medicina e de Psicologia de Coimbra, Centro de Neurociências e Hospital da Universidade de Coimbra). A investigação foi realizada numa amostra comunitária de 630 sujeitos (63,7% do sexo feminino), estando representadas as principais regiões do país. Foram avaliadas as variáveis idade, género, nível educacional, estado civil, situação profissional, região demográfica e área de residência, mas também saúde (queixas subjetivas de memória, sintomatologia depressiva e história familiar de demência.

Os resultados obtidos permitiram concluir que a pontuação no teste do desenho do relógio era muito influenciada pela escolaridade (influência positiva) e também pela idade (influência negativa), sendo estas duas variáveis (em conjunto) responsáveis por 26% da variância das cotações obtidas. O género (melhor desempenho para os homens) revelou ter uma influência reduzida. Não se observou um efeito significativo das variáveis geográfica e das variáveis de saúde estudadas, apenas a presença de queixas subjetivas de memória revelou um efeito negativo significativo no desempenho da prova, embora de baixa magnitude.

A análise dos resultados permite concluir que, entre os portugueses, a escolaridade e a idade são as únicas variáveis com um efeito robusto no desenho do relógio. Foi a partir destas premissas que se realizou um segundo estudo em que se analisaram os efeitos das duas variáveis e se definiram as pontuações de corte para os principais grupos de idade/escolaridade (normativos). Estes resultados estão publicados em revistas científicas nacionais e estrangeiras e estão disponíveis para serem utilizados em contexto clínico e de investigação.

Isabel Santana (médica neurologista) e Diana Duro (neuropsicóloga)

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