Qual a relação entre Covid-19, olfato, queijo de cabra aquecido com doce de morango e omelette aux truffes? Ajudam a confirmar a associação entre olfato e paladar. Afinal, a gastronomia pode ser o caminho para recuperar o cheiro perdido. Neste caso, o treino decorre em Rocamadour (França), berço do Homem de Cro-Magnon e de muitas outras particularidades

Dezembro 2019 – o novo Coronavírus (SARS-COV II) é relatado pela primeira vez, na cidade de Wuhan, na China.

11 Março 2020 – a Organização Mundial de Saúde (OMS) declara pandemia relacionada com infeção / Covid 19.

À falta de tratamento eficaz, grande parte do mundo vê-se mergulhada num confinamento rigoroso que iria marcar o início de uma crise sanitária, económica e social. 

O afastamento social e o uso generalizado de máscara fazem evocar as medidas utilizadas, na idade média, nas epidemias de “Peste negra”…

As manifestações clínicas desta nova infeção respiratória aguda apresentam uma grande variedade: febre, dores musculares, fadiga, tosse, falta de ar (dispneia), nenhuma delas específicas da doença, mas todas elas preocupantes para cada um, quando se manifestavam.

Entre essas manifestações um conjunto de sintomas ganhou destaque: as perdas olfativas. 

O olfato é um dos cinco sentidos básicos e refere-se à capacidade de captar odores/cheiros. O mecanismo nervoso responsável pela olfação começa no nariz, local onde é ativado, após as moléculas das substâncias odoríferas serem misturadas no muco que recobre o epitélio nasal (membrana pituitária).

A perceção dos cheiros, após a ativação dos recetores químicos, vai desencadear um estímulo nervoso, que segue um trajeto que termina na parte mais antiga do cérebro – o Rinencéfalo. 

No Rinencéfalo, duas áreas estão associadas, a olfativa e a límbica. Esta associação provavelmente explica a capacidade para experimentar e expressar emoções desenvolvida a partir do processamento dos odores. Quem já leu o livro O Perfume, escrito pelo alemão Patrick Süskind no final do século XIX (ou já viu filmes ou séries baseados no mesmo), compreenderá facilmente o trauma e o impacto, por vezes devastador, da perda (anosmia) ou mesmo diminuição (hiposmia) do olfato. É uma boa ocasião para ler, ou reler, o fascinante livro de António Damásio, O erro de Descartes, onde o dualismo mente/corpo é confrontado com o princípio de que “o cérebro não foi apenas criado por cima do corpo, mas também a partir dele e junto com ele”.

Uma das características fundamentais do olfato é o facto de as células recetoras nasais em número muito elevado, não estarem diferenciadas à nascença. Essa diferenciação vai-se dando ao longo da vida do indivíduo onde, à medida que as mais diferenciadas vão morrendo, outras as vão substituindo. Como, apesar de numerosas, essas células olfativas são em número finito, com o avançar da idade, a capacidade olfativa pode ir diminuindo. 

A perda de olfato, quase sempre transitória, é um sintoma muito frequente nas doenças respiratórias, como por exemplo, a vulgar constipação. Esta situação é, na maior parte dos casos, explicada pela apetência dos vírus respiratórios pelas células sensoriais da mucosa nasal. A regeneração dessas mesmas células, como atrás explicado, faz com que, habitualmente, o olfato seja recuperado ao longo de um período de cerca de dois meses.

Na Covid 19, a explicação das alterações olfativas não está ainda completamente esclarecida, existindo diversas teorias: resposta inflamatória, resposta imunológica, efeito adverso de medicamentos…

Embora, na maior parte dos casos, haja uma recuperação espontânea, quando tal não sucede, não há um tratamento único e seguramente eficaz para a sua resolução. 

Um dos métodos que podem ser utilizados, muitas vezes com sucesso, é o do treino do olfato. Uma vez que uma redução na capacidade de sentir cheiros implica também uma redução da capacidade de sentir sabores (hipogeusia) ou perda do paladar (ageusia) – a comida parece insípida, a gastronomia pode ser uma alternativa para a realização desse treino.

Junho 2021 – o aparecimento de vacinas e a vacinação generalizada da população permite aliviar as medidas de confinamento.

A ânsia de “virar a página” é grande. 

Pela nossa parte, e até porque somos otorrinolaringologistas, optámos pela gastronomia.

Existem, em Portugal, muitos destinos com património histórico-cultural e gastronómico rico. Por razões de educação, decidimos ir um pouco mais longe – Rocamadour, centro mariano de peregrinação na idade média. Para quem gosta de ciclismo, foi onde se desenrolou o contra relógio final do Tour de France de 2022. Para quem gosta de programas televisivos culturais, passou recentemente na RTP 2 um documentário sobre este santuário ilustrando as suas particularidades: a estátua da Virgem Negra, objeto de culto e peregrinação, a espada Durandal, espada mítica de Rolando, o paladino de Carlos Magno (La chançon de Roland, gesta da idade média), o túmulo de Saint Amadour, mas também a beleza da paisagem e o desafio arquitetónico na origem deste local.

Rocamadour situa-se no sudoeste de França, na zona do Périgord/Quersy, região turística encantadora. É lá que podemos encontrar as grutas de Lascaux, património mundial da Unesco, famosas pela sua arte parietal, a localidade de Les Eysies, berço do Homem de Cro-Magnon, os mais antigos fósseis de Homo Sapiens conhecidos na Europa e inúmeros restaurantes onde se pode desfrutar da gastronomia da região. 

Foie gras, morangos, nozes, Confits, Cèpes (uma espécie de cogumelos) e, sobretudo, trufas negras são algumas das iguarias que podemos degustar. Para os apreciadores, regadas com vinho de Bergerac, pátria de Cyrano, célebre pelo seu nariz…

Em jeito de conclusão, a refeição que mais nos marcou, num final de tarde de um lindíssimo dia de Sol, na esplanada de um restaurante situado na escarpa de Rocamadour, acompanhados pelo pôr-do-sol… Cabécou de Rocamadour (queijo de cabra) aquecido com doce de morango, omelette aux truffes com uma miscelânea de aromas e um sabor indescritíveis que permitiram confirmar a associação olfacto-paladar e levar-nos, até atendendo ao local onde nos encontrávamos, a agradecer a Deus termos ultrapassado a Covid e a bênção que nos fora concedida, ao contrário, infelizmente, de muitos, de podermos ter ultrapassado a pandemia.

Jorge Miguéis

(Médico Otorrinolaringologista)

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