Há estudos, mas ainda não existem recomendações formais. Um extrato de Beladona pode ser a solução para que a miopia infantil não evolua. Surgem os primeiros estudos de eficácia em crianças, entre os 4 e os 12 anos de idade
A atropina é um dos mais antigos venenos, conhecendo-se referências do seu uso no Antigo Egipto. Trata-se de um fármaco bloqueador de recetores muscarínicos, impedindo a ação da acetilcolina nas estruturas com inervação parassimpática e musculatura lisa. A nível ocular tem um efeito midriático, ou seja, dilatador da pupila, e cicloplégico, bloqueando a ação do músculo ciliar e o mecanismo de acomodação (impede a “focagem”).
O seu nome deriva da planta de onde é extraído, a Atropa belladonna, conhecida em Portugal como Beladona, Erva-midriática ou Erva-moura-furiosa e, em inglês, pelo mais dramático “Deadly Nightshade”. Na mitologia grega, Átropos (do grego “Sem Retorno”) era uma deusa que regia os destinos dos mortais. Era considerada a mais velha das Moiras e conhecida como a “Inevitável” ou a “Inflexível”, sendo ela que cortava o fio da vida.
Contrastando com este passado e, mais recentemente, o termo belladonna refere-se a “mulher bonita” ou “bela”, atribuído pelo facto de a substância ter sido utilizada pelas senhoras, desde o Renascimento até ao séc. XIX, para dilatar as pupilas e assim realçar a sua beleza! Naturalmente que os efeitos na visão, neste contexto, teriam muito pouca importância!
Hoje até podemos ser levados a pensar que estamos a falar de uma novidade, mas o uso (pelos oftalmologistas) da atropina no controlo da miopia conhece-se há mais de um século. A primeira referência data de 1864, altura em que Donders recomendou o seu uso como tratamento da miopia, em casos de suspeita de espasmo acomodativo.
Mais recentemente, diversos estudos foram publicados procurando estabelecer evidências no sentido da sua utilização para o controlo da progressão na miopia infantil. Os estudos mais relevantes são o ATOM 1 – Atropine for the Treatment of Childhood Myopia Study (2006), ATOM 2 (2012), LAMP 1- Low-Atropine for Myopia Progression Study (2018) e LAMP 2 (2019, fase 3 em 2021). Resumidamente, estes estudos demonstraram que em crianças dos 4 (ou 6, dependendo dos estudos) aos 12 anos, a aplicação diária de colírio de atropina resulta numa redução da progressão miópica. Contudo, este efeito surge à custa de efeitos secundários visuais significativos, nomeadamente dilatação pupilar mantida, fotofobia e visão desfocada.
No entanto, estes efeitos são muito reduzidos ou quase inexistentes quando o colírio é usado em concentrações muito reduzidas – relativamente ao colírio original – sem perda significativa da eficácia. Estes mesmos estudos também mostram o efeito que a suspensão da medicação exerce sobre o ritmo de progressão da miopia, bem como o da sua reintrodução.
Mas porque terá este efeito a atropina? Não se sabe com certeza. Pensa-se que poderá estar no facto de influenciar o sistema acomodativo, mas mais certo mesmo é que possa atuar principalmente numa via não acomodativa. Há recetores muscarínicos presentes no epitélio pigmentado da retina e os modelos animais demonstraram efeitos biomecânicos na espessura e resistência da esclera e da coroide.
O mais certo é que a atropina atue por diversas vias, reduzindo o crescimento do comprimento axial e a progressão miópica. O facto atual é que o tratamento farmacológico da progressão miópica existe e é eficaz. Contudo, não existem ainda recomendações formais para o seu uso, nem guidelines que norteiem a sua utilização. Nem a sua suspensão.
Pelo que cada caso deverá ser avaliado individualmente, a sua utilização discutida com os pais e a própria criança, avaliando o risco de elevada progressão miópica e todas as alternativas de tratamento existentes.
E assim, aquilo que antes era um veneno, poderá hoje ser usado por crianças míopes, em casos e situações concretas, sempre com o objetivo de evitar que cheguem à idade adulta com os problemas de saúde visual associados às miopias mais elevadas. É uma questão de dose.
Rui Tavares
(Médico, Oftalmologista)
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