A crescente dependência de dispositivos eletrónicos e o stress estão a provocar alterações na visão que podem induzir tratar-se de uma aparente miopia, que afinal não é. Um estado prolongado de contração de um músculo explica porque a visão fica desfocada e a história do Guilherme ajuda-nos a perceber como tudo acontece
“Chamo-me Guilherme e tenho 11 anos. A minha vida é ótima, tudo corre bem na escola, jogo futebol e adoro videojogos. E tudo estava bem… até há uns meses atrás. Foi na altura dos testes, os últimos do 5º ano. Eu trabalhei muito e acho que estava bem preparado, mas naquelas últimas semanas de aulas andava mais preocupado e comecei a reparar que era difícil ver o que os professores escreviam no quadro. Tinha de copiar tudo pelo meu amigo do lado, o Albertino – que todos chamávamos de Tino e que jogava mesmo bem à bola – o que me valeu umas reprimendas… os professores achavam que estávamos a conversar na aula! O facto é que ele via o que estava no quadro e eu não.
O que eu achava estranho é que quando estava a ver Youtube ou a jogar no telemóvel não sentia nenhuma destas dificuldades. E sentia-me mesmo bem quando estava a jogar. Os adultos não entendem como é importante!… Mas é verdade que às vezes até me esquecia de comer.
Bem, achei que isto de ver tudo desfocado não era importante e que ia passar, mas tornou-se realmente dramático quando comecei a não ver bem a bola nos treinos… e pior, nos jogos também me acontecia! Assim, não conseguia jogar bem, não podia ser!
Por isso decidi contar à minha mãe! Ao princípio, ela desconfiou que eu estivesse a brincar, porque eu sempre vi bem, melhor do que ela, até! Depois, decidiu levar-me a um sítio cheio de máquinas e com muita gente. Disseram-me para apoiar o queixo numa máquina e olhar para um balão que estava lá dentro. Foi giro e acho que cumpri o que me pediram…
Depois disseram uma coisa muito estranha à minha mãe… qualquer coisa como 7 dioptrias ou lá o que isso é… não percebi bem, mas quando o médico me pediu para ver umas letras ao fundo, num ecrã, não consegui ver nenhuma das mais pequenas. Parecia que estava na sala de aula! Eram mesmo pequeninas!
O facto é que devem ter achado aquilo muito estranho porque decidiram que tinha de fazer um teste qualquer. Só tinha de pôr umas gotas nos olhos e esperar. Nada de especial. Também acho que me portei bem nesta parte. Passado uns minutos, comecei a reparar que já não via assim tão mal ao longe, mas afinal não conseguia ver bem as minhas próprias mãos! Que gotas estranhas!
Assim que o médico voltou a chamar o meu nome, apontou uma luz para os meus olhos e disse algumas coisas à minha mãe que a deixaram mais tranquila. Eu reparei nisso. Afinal não estava a precisar de óculos, mas ia precisar de fazer um tratamento com gotas em casa.”
Esta podia ser a história de muitas crianças e adolescentes de hoje em dia. A crescente dependência de dispositivos eletrónicos, seja em contexto escolar, seja nos tempos livres, agudiza a ocorrência de casos como o do Guilherme, que parecia estar com uma miopia – tudo parecia apontar para esse diagnóstico – que afinal não era.
Qual era então o problema do Guilherme e o que lhe aconteceu?
Muitas crianças notam dificuldade em ver para o quadro, mas não quando leem um livro, mas não de forma permanente como nos míopes. Isto pode explicar-se com a presença de um elevado tónus acomodativo, isto é, um estado prolongado de contração do músculo ciliar, propiciada pelo uso excessivo da visão de perto e também pelo stress.
A esta situação chama-se espasmo acomodativo. Esta condição pode conduzir a um estado de pseudomiopia, com desfocamento da visão à distância, acuidade visual variável e muitas vezes dor ou desconforto localizado à órbita, e se não for corretamente identificada, a criança pode ser diagnosticada como míope, quando afinal não tem miopia (um erro refrativo, que altera a estrutura ocular e que exige o uso de lentes adequadas para a sua correção).
Na maioria dos casos, o tratamento da condição do Guilherme passa pela utilização transitória de colírios cicloplégicos, ou seja, um tratamento que vai enfraquecer o tal músculo hiperfuncionante e que se encontra em espasmo. Não confundir com as gotas que têm sido anunciadas para a prevenção do aumento da miopia. Mas dessas poderemos falar noutra ocasião…
A situação sendo aguda/subaguda e transitória, pode simular uma miopia que, afinal, não existe, porque a criança acaba por voltar à situação de refração anterior e, em muitos casos, não necessita de usar óculos.
Para que nos foquemos no que é mesmo importante, nesta condição, como em tantas outras, um diagnóstico diferenciado é fundamental!
Rui Tavares
(Médico, Oftalmologista)
Boa noite,
Gostaria de saber se esta situação pode provocar algum tipo de desiquilibrio motor, como o simples de caminhar numa linha reta.
ReplyObrigada pela 6
Bom dia. A situação explicada no referido texto não provoca desequilíbrio motor. Deverá consultar o seu médico de família para melhor perceber a origem desse sintoma.
ReplyBoa tarde. A minha filha, com 8 anos, andava a queixar-se que não via bem o que estava escrito no quadro. Foi a uma consulta de oftalmologia, seguida de outra antecedida de 3 dias com colocação de gotas nos olhos. Teve os mesmos sintomas descritos pelo Guilherme (deixou de ver bem ao perto). A médica receitou-lhe uns óculos (OD: Esfera: +3 diop; Cilindros:-1 diop e 180ºeixo; OE: Esfera: +3.75 diop; Cilindros:-2 diop e 180ºeixo). Será que no caso da minha filha é melhor procurar uma 2ª opinião? Não poderá ser, tal como o Guilherme, um outro problema e que pode não necessitar de óculos.
ReplyGrata pela atenção,
Sandra Garcia
Bom dia. Provavelmente, as gotas serviram para relaxar o músculo da acomodação, o que terá permitido avaliar qual o erro refrativo da maneira mais correta. Contudo, também não refere se a sua filha ficou ou não a ver bem com os óculos que foram prescritos. Se ainda tem dúvidas, sugerimos que troque essas ideias com o médico assistente.
ReplyBoa tarde.
ReplyA médica que prescreveu os óculos, na 2ª consulta (após a colocação das gotas durante os 3 dias anteriores), referiu que essa metodologia veio confirmar o diagnóstico da 1ª consulta.
Ainda não comprei os óculos pois queria uma segunda opinião. Acontece que só consigo consulta com médicos de oftalmologia pediátrica em outubro! Não sei se hei de esperar até essa altura ou se mande fazer os óculos. O que me aconselha?
Grata pela atenção,
Sandra Garcia
Boa tarde, lamento, mas não podemos aconselhar.. Ou seja, neste espaço, não podemos criticar ou validar um trabalho feito. A decisão terá de ser sua. Agradecemos a sua compreensão
ReplyBoa tarde.
ReplyEntão, permita-me só mais uma questão: haverá problema se aguardar mais um mês até conseguir uma consulta de oftalmologia pediátrica? Ou seja, a situação da minha filha poderá aguardar mais um tempo sem piorar?
Grata pela atenção,
Sandra Garcia
Boa tarde. Em principio não deve agravar. Durante este espaço de tempo, a criança fará um esforço maior para conseguir ver bem. Espero ter esclarecido. Cumprimentos
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