Nesta história, ninguém ficou escandalizado por o Ministério da Escrita ter sido substituído pelo Ministério dos Apara-lápis. O avolumar de trabalho foi o argumento perfeito para mudar o rumo da vida dos “insubstituíveis” escrivães

Era uma vez …

Um Reino em que todos os documentos, registos e romances eram escritos com um instrumento que, usando uma tinta perene, era semelhante a um lápis, na necessidade de ser afiado periodicamente para manter a funcionalidade.

Desde tempos imemoráveis, os escrivães daquele reino, muito respeitados pelo povo e pelos governantes, pela sua sabedoria e qualidade das obras literárias e demais documentos que produziam, se encarregaram de afiar os lápis, sempre que necessário.

Ora a determinada altura, perante o imenso trabalho que se avolumava, atendendo ao baixo número de escrivães disponíveis, outros profissionais indiferenciados começaram a praticar essa atividade necessária, mas ineficiente na produção dos escrivães: afiar os lápis quando estes deixavam de funcionar.

Com o correr dos tempos, mesmo quando recuperaram a disponibilidade em que o poderiam fazer, os escrivães deixaram de afiar os lápis. As novas gerações passaram a considerá-la até uma atividade pouco digna. Criaram mesmo um circuito de procedimento em que os lápis, quando deixavam de funcionar, eram entregues a um funcionário que os recolhia, e eram depois devolvidos, já afiados.

Os jovens escrivães deixaram de saber como se executava o reprocessamento do seu instrumento de trabalho.

Entretanto, os antigos ajudantes indiferenciados dos escrivães foram organizando a sua atividade: propuseram e foi aceite como nova profissão pela organização administrativa das competências técnicas do reino. O lobby do ensino criou mais um curso superior. Surgiram sindicatos, que criaram as respetivas grelhas salariais. Uma Ordem Profissional, que definiu a idoneidade e criou uma cédula profissional obrigatória, para quem podia trabalhar naquela atividade.

Rapidamente controlaram o comércio dos lápis, além dos equipamentos e acessórios relacionados com a escrita no Reino e, com o tempo, os próprios conteúdos passaram a ser validados pela influente profissão em ascensão: faltavam sucessivamente lápis aos escrivães que não alinhassem com os seus interesses.

Os escrivães ficaram tão dependentes e perderam de tal forma o prestígio social adquirido durante séculos, que ninguém se escandalizou quando o Ministério da Escrita foi substituído pelo Ministério dos Apara-lápis!

Luís Filipe Silva
(Médico, Otorrinolaringologista)

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