A fronteira não é precisa e a tristeza não pode ser vista como um sinal. A depressão é muito mais e implica sofrimento. O caminho pode começar pela ansiedade, desespero, frustração e desmoralização. Mas é a personalidade e a capacidade de adaptação que combatem este estado de espírito que precede a antecâmara da depressão

É frequente ouvir as pessoas falarem de cansaço, depressão, desgaste e outros termos para se referirem a estados de espírito que pensam serem todos a mesma perturbação, mas que diferem tanto na qualidade e profundidade das sensações, bem como clinicamente, porque devem ser entendidos de forma diferenciadora.

Perante cada caso devemos perceber o que sucedeu antes do aparecimento dos sintomas, verificar se existem ou não fatores orgânicos por detrás das queixas, perceber se houve ingestão de alguma substancia medicamentosa ou outras, se se verificam dificuldades sócio profissionais, ou se as caraterísticas próprias de personalidade podem explicar as referidas perturbações.

Na prática, muitos pacientes têm dificuldade em recordar as circunstâncias e as flutuações sintomatológicas prévias, de modo a que as distinções ganhem significado para serem tratadas adequadamente. No entanto, na presença da pessoa com queixas como tristeza, cansaço, irritabilidade ou mesmo disfunções neurovegetativas ligadas a estados ansiosos, impõe-se uma abordagem que inclua um espectro de investigações, que vão da neurobiologia à psicossociologia. Só uma visão global, de modo a percebermos o enquadramento circunstancial, pode indiciar se estamos em presença de uma depressão, de outra situação mórbida ou de uma reação normal perante um evento stressante.

A depressão é uma das entidades mais referenciadas em psiquiatria, mas é, sem dúvida, uma das mais ambíguas, pois sendo a tristeza o sinal mais significativo do seu diagnóstico, ela é também uma experiência humana vulgar e normal. A depressão manifesta-se por múltiplas formas, muitas vezes sem que a tristeza seja visível e detetável, sendo associada a muitas comorbidades de causas diversas, exigindo-se por isso um diagnóstico rigoroso.

Distinguir o normal do patológico

A distinção entre situações depressivas e outras vivências capazes de mimetizar o humor patológico, é imperativa para se programar a terapêutica adequada, seja ela farmacológica, psicológica ou com qualquer outro método. Já a depressão de gravidade moderada exige, pelos perigos que pode representar na indução de comportamentos anómalos, uma terapêutica incisiva farmacológica, para além de eventual ajuda psicoterapêutica.

Outras disfunções que provocam sofrimento são produto da conjugação negativa de causas conflituais na esfera social, familiar ou profissional, gerando sintomas que dificultam a distinção entre o normal e o patológico e, não raro, a fronteira é imprecisa e mesmo controversa. Também existe dificuldade em diferenciar as chamadas distimias das reações de tipo depressivo, que acompanham alguns tipos de personalidade, bem como o verdadeiro papel, nestes casos, das situações de stress.

Muitas pessoas experienciam situações bastante traumatizantes e nem por isso são percetíveis manifestações de claudicação; há fatores que proporcionam fragilidades e vulnerabilidades, algumas vezes ligadas a dificuldades no lidar com acontecimentos difíceis, outras derivadas de inadaptação na sua forma de estar ou viver.


A génese da depressão

Perante o stress nem todos reagem da mesma maneira, com pessoas que suportam bem o stress e outras que claudicam facilmente. A génese das depressões deriva não só do stress que o trajeto de vida cria, mas igualmente da personalidade e capacidade de adaptação dos indivíduos, da gravidade e número dos eventos adversos, de variáveis biológicas, sociais e psicológicas.

Não é muito despropositado dizer que a personalidade é um vínculo psicológico importante no impacto emocional dos eventos, que podem provocar distúrbios que são, muitas vezes, antecâmara da depressão. Falamos, entre outros estados, da desmoralização que provoca incapacidade de lidar com situações ansiogenas, perda da esperança e do autocontrole. Este estado leva à desistência por já não haver resistência face ao desequilíbrio emocional que se vai vivenciando. Se a experiência se prolonga ou estas vivências se multiplicam, aumenta a sensação de fracasso, as ruminações auto desvalorizantes aparecem, o autoconceito degrada-se e as manifestações relacionais tomam formas que vão da ansiedade, desespero, desmoralização, até à depressão. Qualquer das alterações merece a atenção médica e se forem persistentes, o tratamento é imperioso, ponderado cada caso.


Fúria consumidora

As sociedades modernas alteraram a ecologia natural do homem e criaram leis e princípios que sobrevalorizam o lucro e o consumo, dando ao cidadão uma vivência que se consome na TV, na exaltação do privado, na busca da fuga ao anonimato, no consumismo exacerbado.

Esta dinâmica não isenta a saúde do consumismo, somando-se a procura justificada dos cuidados, à fúria consumidora do “médico”, e deste modo, tentar-se combater o vazio, o sofrimento e as angústias. Também na sociedade atual adquire importância uma postura narcísica da cultura do corpo, tendo como essencial nesta valorização o prazer, a beleza e a ausência da dor.

Neste labirinto de caminhos para “o ser feliz” e o bem-estar, há bastante frustração e uma sensação de constrangimento por não satisfação dos objetivos e projetos. A fadiga, a tensão, a irritabilidade, a falta de objetivos, são a natural consequência de uma modernidade social que esvazia a existência, bloqueia o futuro, leva à ruminação sobre os insucessos e termina no consumo de todas as substâncias que esbatam o desprazer e levem à sobrevivência minimamente humana.

O combate a este estado de espírito faz-se fundamentalmente na esfera social, pensando a realidade na sua complexidade e abrindo pontes a um tempo mais esperançoso, sem tanto ceticismo e desumanização.

António Reis Marques
(Médico, Psiquiatra)

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