Ser adolescente e tornar-se um atleta de elite é o sonho de quase todos os jovens desportistas. Mas, uma entorse do joelho pode interromper o caminho traçado. Explicamos o que é uma Lesão do Ligamento Cruzado Anterior (LCA), como prevenir, onde está o risco, quais os tratamentos e as expetativas

Todos nós conhecemos uma pessoa, que está sempre a repetir a história de como não chegou ao topo e competiu com os melhores do mundo. O que aconteceu? Uma entorse do joelho durante uma participação desportiva aos 13 anos de idade, com o resultado devastador de uma lesão do Ligamento Cruzado Anterior (LCA). Havendo vários relatos de atletas que regressam ao desporto após este tipo de lesão e, sem acusar este amigo de mentir, podemos concluir que ele provavelmente desistiu ou reconsiderou outras opções profissionais. A experiência clínica destes pacientes tem revelado a raridade com que os atletas chegam ao nível de elite, após lesão do LCA na adolescência, independentemente do tratamento efetuado. Um atleta de elite pode ser definido com um atleta que atingiu o nível mais elevado de performance num determinado desporto. Em primeiro lugar, é importante conhecer a natureza da lesão do LCA, o seu diagnóstico e as diferentes opções de tratamento, para estarmos mais próximos de entender o seu prognóstico neste subgrupo de pacientes.

Anatomia do joelho

A articulação do joelho está na intersecção de três ossos, o fémur (o osso da coxa), a tíbia (o principal osso da perna) e a patela (antigamente conhecida por rótula). A última é posicionada à frente da articulação do joelho, proporcionando alguma proteção aos quatro ligamentos que conectam o fémur e a tíbia, mantendo o joelho estável. Os ligamentos colaterais estão de lado no joelho. O ligamento medial está na parte interna do joelho, enquanto o ligamento lateral está na parte externa. Estes ligamentos controlam o movimento medio lateral do joelho. Os ligamentos cruzados dispõem-se na diagonal na parte central do joelho, formando um “X”, com o LCA na parte da frente do joelho, e o ligamento cruzado posterior na parte de trás. Estes ligamentos controlam o movimento do joelho para a frente e para trás. Adicionalmente, o LCA proporciona estabilidade ao joelho e impede a tíbia de se mover à frente do fémur.

O que é uma lesão do LCA? 

Consiste numa entorse ou rotura deste ligamento, que é importante no controlo do movimento do joelho. As entorses e roturas do LCA estão entre as lesões mais comuns do joelho e podem ocorrer durante a infância, adolescência e idade adulta. Algumas destas lesões irão requerer tratamento cirúrgico. Cerca de metade de todas as lesões do LCA ocorrem em combinação com outras lesões no joelho, tais roturas de menisco, lesões da cartilagem e de outros ligamentos.

Fatores de risco

Existem múltiplos fatores de risco associados à rotura do LCA, que se dividem em não modificáveis e modificáveis. No que ao primeiro grupo diz respeito, durante a puberdade ocorre um crescimento rápido do fémur e da tíbia, o que aumenta a força de torsão do joelho, tornando o controlo muscular mais difícil, conferindo um maior risco de rotura do LCA durante esta fase do crescimento. Na população adolescente e que participa em atividades desportivas, o risco de rotura do LCA é 1,6 vezes maior nas raparigas que nos rapazes. A razão para esta diferença não é totalmente clara, mas parece basear-se em teorias biomecânicas e hormonais. Outra caraterística desta faixa etária é a hipermobilidade das articulações, que aumenta consideravelmente o risco de lesão, especialmente em raparigas que jogam futebol. 

Relativamente aos fatores de risco modificáveis, sabe-se que o desequilíbrio neuromuscular, típico de crianças em desenvolvimento, assume grande importância. Este deve ser melhorado com a aplicação de programas preventivos, com exercícios físicos específicos durante os treinos. Desportos indoor ou em relva sintética aumentam o risco de lesão, comparativamente aos desportos praticados em relva natural, pelo aumento da fricção com o calçado. Pelo mesmo motivo o tempo seco também se assume como um fator de risco para lesão. Os atletas que participam em desportos como o futebol, rugby, esqui, basquetebol, ténis, ginástica e voleibol – onde fazem desacelerações bruscas, saltos ou quedas desamparadas e mudanças repentinas de direção – são mais suscetíveis de sofrer lesões graves do LCA, podendo ser considerados desportos de alto risco para este tipo de lesão.

Tipos de lesões do LCA

– Grau 1: O ligamento sofre um estiramento, mas ainda pode manter a articulação do joelho estável.

– Grau 2: O ligamento sofre um estiramento e fica frouxo. Este tipo de lesão do LCA é frequentemente referida como uma rotura parcial do ligamento. É rara.

– Grau 3: Consiste numa rotura completa do ligamento, o LCA é dividido em duas partes e o joelho fica instável.

Sinais e sintomas de lesões do LCA

Até cerca de 70% destas lesões ocorrem na ausência de contacto físico. O atleta pode sentir um estalo no joelho no momento da lesão, que se traduz em dor imediata e na maioria dos casos de incapacidade para continuar a jogar. Habitualmente o joelho incha nas primeiras 24 horas após a lesão e perde amplitude de movimento. O atleta tem dificuldade em caminhar e pode sentir que o joelho cede ao tentar fazê-lo.

Diagnóstico

Perante uma suspeita de lesão do LCA, o jovem atleta deve ser avaliado por um ortopedista subespecializado na área do joelho. Será realizada uma avaliação da dor e da sua incapacidade funcional, bem como uma revisão do seu historial médico. Será também realizado um exame físico detalhado, que aborde todas as estruturas do joelho lesionado, fazendo uma comparação com o joelho não lesionado. A gravidade da lesão será caraterizada com recurso a exames de imagem, nomeadamente RX e ressonância magnética do joelho afetado. De seguida, deverá ser construído um plano de tratamento individualizado.

O tratamento

O tratamento da lesão do LCA do seu filho dependerá de vários fatores, nomeadamente a idade, fase de desenvolvimento em que se encontra (maturidade fisiológica e esquelética – em geral o término do crescimento esquelético do joelho ocorre aos 14 anos nas raparigas e aos 16 anos nos rapazes), a gravidade da lesão, lesões associadas (meniscos, cartilagem e outros ligamentos), e nível competitivo do desporto praticado. Por exemplo, um jovem atleta de elite irá provavelmente necessitar de cirurgia para regressar ao seu desporto habitual em segurança; enquanto o tratamento não cirúrgico pode ser recomendado para pacientes que ainda estejam a crescer e que tenham sofrido lesões menos graves.

 Sem tratamento cirúrgico

Tem melhores resultados em jovens altamente cumpridores do plano terapêutico, sem lesões intra-articulares associadas, com baixa demanda funcional e com um estiramento ou rotura parcial do LCA. Permite também que os pacientes possam terminar o crescimento esquelético antes da realização do tratamento cirúrgico, minimizando assim o risco de lesão da placa de crescimento do fémur e da tíbia, e de uma possível consequente deformidade do membro. O tratamento passa por imobilização com uma ortótese do joelho, para o proteger da instabilidade, fisioterapia e modificação da atividade desportiva, que inclui a evicção de desportos de risco.

Com tratamento cirúrgico

Uma rotura completa do LCA não cicatriza sem cirurgia, dada a sua pobre vascularização. Assim, um atleta de elite na fase de adolescência e com uma rotura completa do LCA irá – provavelmente – necessitar de cirurgia para regressar de forma segura ao seu desporto habitual. 

A maioria das lesões do LCA em atletas com esqueleto imaturo ocorre em adolescentes numa fase final do crescimento. Neste subgrupo de pacientes o uso de técnicas de reconstrução do LCA transfisárias (aquelas em que técnica cirúrgica/“novo” ligamento viola a placa de crescimento) acarretam um baixo risco de distúrbios no crescimento. O mesmo já não se verifica na fase de pré-adolescência, dado que neste subgrupo ainda existe um grande potencial de crescimento, havendo a necessidade de ponderar entre o risco de provocar um distúrbio de crescimento com o tratamento cirúrgico, em comparação com o mau prognóstico associado ao tratamento não cirúrgico em roturas completas, nomeadamente, instabilidade crónica do joelho, desenvolvimento de lesões intra-articulares subsequentes, preditores de artrose do joelho no futuro, bem como incapacidade de regressar à prática desportiva, essencial para o desenvolvimento saudável do jovem. No entanto, este subgrupo não é o foco que queremos aqui dar hoje. 

A reconstrução do LCA nos adolescentes é tipicamente realizada por artroscopia, através de pequenas incisões que, sendo menos invasiva do que a cirurgia aberta, permite aos pacientes recuperar de uma forma mais célere. Dado que o ligamento lesado não pode ser simplesmente reparado na maioria dos casos, o ortopedista recria o ligamento usando um enxerto de tecido do próprio doente ou de um dador. Cada tipo de enxerto tem vantagens e desvantagens, que deverão ser discutidas com o ortopedista antes da cirurgia. 

A maioria dos procedimentos de reconstrução do LCA não é realizada imediatamente após a lesão. Em vez disso, os ortopedistas preferem esperar até que o inchaço diminua e o movimento articular tenha sido recuperado. Se uma reconstrução do LCA for realizada demasiado cedo há um risco aumentado de artrofibrose (formação de cicatrizes na articulação), que pode levar à perda do movimento do joelho.

A fisioterapia é vital para a recuperação após uma lesão do LCA em adolescentes – mesmo que se tenha optado por um tratamento não cirúrgico. Permite recuperar o movimento e a força do joelho. O processo de criação de um novo ligamento a partir de um enxerto pode demorar mais de um ano. É importante ajudar este jovem atleta a ter expectativas realistas sobre a sua recuperação. Pode demorar nove meses ou mais, até que um atleta adolescente possa regressar ao desporto em segurança após a cirurgia.

Expectativas 

A proporção de adolescentes que regressam a desportos de alto risco após reconstrução cirúrgica do LCA varia entre 69 a 92%. No entanto, a percentagem dos atletas que regressam ao desporto que praticavam antes da lesão é inferior. Normalmente e nesta faixa etária, os atletas praticam vários desportos em simultâneo, dificultando a determinação de qual se considera o real desporto pré-lesão. Contudo, em desportos como o futebol e rugby, os adolescentes não atingem o seu pico de performance antes do início da idade adulta. Assim, o conceito de retorno ao desporto nesta faixa etária é mais complexo, comparativamente com os adultos. 

Não há evidência consistente na literatura publicada que nos permita perceber o nível futuro de performance de atletas que tenham sofrido uma lesão do LCA na adolescência. Provavelmente a complicação mais devastadora após o retorno à competição é uma lesão secundária do LCA, quer uma nova rotura no mesmo joelho, quer por uma lesão no joelho contra lateral. Na população com idade inferior a 20 anos, após o regresso à competição, a probabilidade de uma segunda lesão aumenta de 3 a 6 vezes, sendo mais alta nos primeiros dois anos após a lesão. Um em cada 3 jovens que regressa a desportos de alto risco vai ter uma nova lesão. Assim, alguns autores sugerem que se espere dois anos até o atleta regressar a este tipo de desporto. 

Por outro lado também se sabe que uma interrupção da prática desportiva durante um tão longo período de tempo pode deitar por terra as aspirações de um jovem atleta alcançar o nível competitivo dos seus companheiros, pondo em risco o seu sonho de se tornar um atleta de elite. Enquanto a literatura atual mostra que os atletas adolescentes são capazes de regressar ao seu desporto pré lesão, há um risco elevado de uma nova lesão no mesmo joelho ou no contra lateral. Assim, apesar de todos os avanços nos últimos anos em termos de técnicas cirúrgicas e protocolos de reabilitação, estes não têm tido um impacto claro na redução da taxa de lesão secundária do LCA. 

São necessários mais estudos sobre o retorno à competição nesta população de alto risco de lesão secundária e a criação de novos critérios para o retorno à competição em segurança. Assim, a história que ouvimos repetidamente do nosso amigo não ter conseguido atingir o topo competitivo no desporto, após uma lesão do LCA em idade adolescente, pode ser baseada mais em factos do que em ficção.

Vítor Hugo Pinheiro
(Médico Ortopedista)

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