Alterações no sono precedem em anos, ou mesmo décadas, diversos tipos de demência. Não só pela quantidade de horas que se dorme, mas também pela qualidade do sono. A insónia e a apneia do sono são alguns dos distúrbios que podem ser responsabilizados pelo desenvolvimento de demências

Os distúrbios do sono são praticamente constantes nos processos demenciais. Este é um dado importante e que tem suscitado um interesse crescente expresso em numerosos estudos. Mas, mais relevante ainda, é o facto de que muitas destas alterações do sono precederam em anos, ou mesmo décadas, os diversos tipos de demências. Levanta-se assim a questão de saber se essas alterações são expressão inicial dos processos demenciais ou se podem elas próprias, per si, estarem envolvidas no desenvolvimento das demências. 

A questão é de importância crucial uma vez que, se as alterações do sono podem ser coresponsabilizadas no desenvolvimento das demências, é possível serem objeto de intervenção, no quadro, por exemplo, do estilo de vida ou de correção de distúrbios do sono que conduzam à prevenção destas situações

Experiências já antigas, em indivíduos normais, incluindo jovens, demonstraram à evidência os efeitos de privação de sono, total ou parcial, na função cognitiva, em particular, na limitação da capacidade de aprendizagem e na consolidação da memória.

Estudos epidemiológicos recentes mostram uma associação entre a duração do sono e a incidência de demência: comparativamente com as 7-8 h de sono consideradas padrão e dormir 5 h ou menos está associado com um risco duplo de desenvolver demência. Outros estudos também demonstram um risco aumentado com períodos de sono superiores a 9 h, mas com menor consistência, por menor tempo de seguimento e não exclusão de patologia associadas que possam determinar essas necessidades de sono aumentadas.

Um novo estudo mostrou que uma persistente curta duração de sono aos 50, 60 e 70 anos aumentava em 30% a possibilidade de aparecimento de demência, independentemente de outros fatores sociodemográficos, comportamentais, cardio metabólicos ou mentais.

No entanto, para além da quantidade de sono, existe também evidência da influência na disfunção cognitiva de diferentes distúrbios do sono – como a insónia, a síndroma de apneia do sono ou os movimentos periódicos do sono – no que representam enquanto perturbação da qualidade do sono, com reflexos na sua arquitetura e redução de tempo de sono de estádios fundamentais para esse objetivo, como o sono lento profundo ou o sono REM.

Numa interessante revisão que faz a meta-análise de múltiplos estudos sobre o assunto e que, no conjunto, incluem milhares de indivíduos, concluiu-se que a presença de distúrbios do sono, no seu conjunto, implica um risco de demência por qualquer causa 1,19 superior, relativamente aos indivíduos que não sofrem de problemas do sono. 

No entanto, dos resultados dessa mesma análise, pode-se inferir que parece existir uma relação entre um determinado tipo de distúrbio do sono e o risco de um determinado tipo de demência. Por exemplo, a presença de insónia aumenta o risco de Doença de Alzheimer, mas não de demência vascular; por outro lado, os distúrbios respiratórios do sono, e.g. apneia do sono, aumentam o risco quer para Doença de Alzheimer, quer para demência vascular; distúrbios do movimento no sono, como a Síndroma de Pernas Inquietas, aumentam o risco de demência de qualquer tipo, assim como os distúrbios do ritmo circadiano (apesar de nestas duas últimas situações a evidência ser menos forte).

Um aspeto importante é procurar reconhecer os mecanismos intrínsecos que determinam a deterioração cognitiva e a instalação da demência por alterações da quantidade ou qualidade do sono. E é nestes fatores que se tem desenvolvido muito da investigação recente nesta área.

Por exemplo, a marca patológica mais relevante na doença de Alzheimer são os depósitos em determinadas localizações do cérebro de placas compostas de um peptídeo (beta amiloide), assim como de emaranhados neurofibrilares agregados por uma proteína (tau) com características anormais. Ora, o interessante é que já se demonstrou que a presença de beta amiloide no líquido cefalo-raquidiano mostra um claro padrão circadiano em adultos jovens, padrão que se atenua em indivíduos mais idosos e, para além disso, que a variação diurna da concentração de beta amiloide correlaciona com o tempo de sono: a duração da vigília aumenta a concentração de beta amiloide, enquanto o sono diminui essa concentração, sobretudo o sono lento profundo, onde os níveis de beta amiloide são menores. 

O que concorda com a noção de que uma das funções do sono seria a limpeza de produtos neurotóxicos, que se vão formando pela atividade neuronal da vigília. Um outro estudo também provou que a carga de beta amiloide, no córtex pré-frontal de humanos, correlacionava significativamente com a limitação da produção de ondas lentas cerebrais típicas do sono profundo e, para além disso, que esta limitação se correlacionou com a consolidação da memória. Também para a proteína tau de características anormais, ainda que menos estudada – pelo menos em modelos animais – é possível encontrar correlação com perturbações do sono.

Mas, para além destes dois elementos mais associados à Doença de Alzheimer, existem outros estudos que mostram a associação entre má qualidade do sono ou redução da eficiência do sono, com a presença de outros metabolitos cerebrais que conduzem a lesão neuronal em estruturas cerebrais particulares, como o hipocampo, que tem um papel central na memória ou locus ceruleus, que é crítico para a função cognitiva.

Em associação com todos estes fatores ou, em certos casos, promovendo-os ou facilitando-os, há evidência de existir um processo inflamatório que se relaciona também com as alterações do sono. Um conjunto de estudos experimentais que envolveram privação completa do sono, privação parcial ou restrição crónica do sono mostram a ativação de marcadores biológicos de estado inflamatório como a proteína C reativa ou a interleukina-6. Por outro lado, admite-se que a inflamação sistémica pode conduzir a alterações da microglia cerebral, com a consequente inflamação do sistema nervoso central, o que poderia explicar o envelhecimento celular. 

Neste sentido, percebe-se como um distúrbio respiratório do sono, como a apneia do sono, onde – para além das alterações do sono induzidas pela fragmentação associada aos micro despertares determinados pelos eventos respiratórios – existe descida intermitente dos níveis de oxigénio (hipoxia intermitente), provocando alterações celulares e atrofia cerebral (do hipocampo, por exemplo), através do chamado stress oxidativo, com neuro inflamação associada.

Assim, compreende-se a importância de reconhecer o papel dos distúrbios do sono no desenvolvimento das demências, no quanto isto significa de possibilidade de intervenção preventiva, detetando e tratando esses distúrbios.

No fundo, investir numa boa qualidade de sono, mesmo que o sono possa ser um co-fator de um processo demencial, pode contribuir, no longo-termo, para a sua prevenção ou agravamento. 

José Moutinho
(Médico Pneumologista, com Competência em Medicina do Sono)

Um estado vital

O sono é um estado fisiológico vital que influi no equilíbrio de todos os sistemas reguladores do funcionamento do organismo. 

As funções do sono incluem um papel no crescimento corporal, porque é durante o sono profundo que se produz a hormona do crescimento; a poupança e restauração da energia; regulação da temperatura corporal; diversas funções metabólicas e na imunidade, mas também nas funções neuro cognitivas – em particular na consolidação da memória, função onde os diferentes estádios do sono concorrem de um modo articulado. 

Por exemplo, o estádio N3, correspondente ao sono de ondas lentas (sono profundo) favorece a consolidação da memória declarativa; o sono REM beneficia os aspetos procedimentais e emocionais da memória; o estádio N2 (estádio intermédio entre o sono superficial e o sono profundo) relaciona-se com a consolidação da memória em sequências motoras.

Não foi por acaso que a World Sleep Association definiu como lema para a comemoração do Dia Mundial do Sono, “Sono de Qualidade, Mente Sã, Mundo Feliz”.

Deixar um Comentário