A sociedade do saber e da informação acabou por promover um mundo virtual que substituiu a obrigação do ser pela necessidade de ter. Sugerimos um novo atalho, onde não falte “tempo” e “consciência”. Há caminhos que ninguém faz sozinho
É sabido que em todos nós há um fundo de solidão, necessidade de falarmos connosco (diálogo interno), de refletirmos, necessidade desse estado solitário para a dimensão criativa da vida, ou para tolerarmos melhor a doença e outras situações limite, na procura, muitas vezes, do sentido da existência.
Ao falarmos de solidão é suposto que o façamos de forma multidimensional, o que exige reflexão para se perceber o estado do mundo e, como tão subtilmente, a vida deixou de se focalizar na relação com os outros, para se privilegiar o interesse nas coisas. É um processo de autodestruição, esvaziarmo-nos e exaltarmos esse nosso modo de procurar ser feliz, pela posse de algo que não temos.
A vida tornou-se como uma corrida por pontos, em que umas vezes se ganha e outras em que se perde. Quando se perdem muitos pontos a solução é sair do jogo. Esta é uma das maiores violências que a “modernidade” impôs ao homem – a exclusão – não por opção, mas por não lhe permitir recriar novas relações, novos paradigmas e novas formas de viver. Enclausuramos os mais debilitados em caixas hermeticamente fechadas, favorecedoras de aborrecimento, solidão, que vai envenenando as suas vivências e emoções.
Sabemos que os nossos comportamentos em sociedade têm um ordenamento que é estruturado por instituições como a família, a profissão, o bairro, o grupo de inserção; mas hoje há uma outra força – o consumismo – que cria, inclusivamente, novos valores e regras. É a obrigação do ter, negligenciando o ser, dando a comunicação lugar à publicidade, numa malha que nos obriga ao isolamento, se não jogarmos o tal jogo por pontos, em que na sua inevitabilidade muitos sentem desespero e ausência de futuro.
O nosso quotidiano está virado para o privado, para o sucesso, para a falta de tempo (outro bem de consumo), para a beleza dos corpos, numa procura incessante da felicidade.
Cada um constrói as suas férias, diverte-se frequentemente sozinho, trabalha solitário em frente do computador, ouve música no seu telefone, e sente permanentemente a necessidade de consumir, de adquirir, para atingir o novo imperativo social que é o status.
Estamos em crise de valores, de referências, de modos de vida, invadidos por uma informação caótica que promove uma crescente aculturação e novas necessidades.
As pessoas sentem-se a caminhar em sentido contrário, a revisitar tempos vividos, frustrações do insucesso, numa espiral de desejos e gostos sem limite que geralmente leva a novas frustrações, numa monotonia de acontecimentos e sentimentos que desaguam no abandono, na fadiga e na desesperança.
Todos desejamos bem-estar, interação com os vizinhos e amigos, estabelecer processos de socialização facilitadores do encontro com o outro, pelo estabelecimento dos vínculos construtores da nossa história. Todos desejamos amar e ser amados, perceber que as nossas aspirações vão sendo conseguidas de uma forma autorregulada e eticamente corretas, dando, assim, sentido à vida.
No entanto, a realidade hoje tem uma dinâmica global homogeneizante, que nos escraviza na procura de “sinais de felicidade e qualidade de vida” ditadas por símbolos continuamente propagandeadas, impondo-nos padrões e estilos de vida. É assim que a globalização vai modelando o nosso comportamento, através de processos de identificação social, num ambiente de competição.
Quando há falência na adaptação a este tipo de vida, ou fatores fortes de exclusão, ou mesmo vulnerabilidades pessoais, o cansaço e a desmoralização instalam-se e o sofrimento aparece. Se a situação se mantiver a ansiedade aumenta, a depressão invade as vivências, quase sempre acompanhada de múltiplas somatizações, que levam à ingestão de substâncias de vários tipos, numa fuga ao desconforto e dor psicológica.
É verdade que nem todos os indivíduos lidam com as situações da mesma maneira, pois há diferentes avaliações da realidade, personalidades distintas, experiências e vivências diversas, que originam narrativas pessoais muito próprias.
A solidão não permite partilhar ou criar fatores protetores que aumentem a resiliência e, inevitavelmente, acelera a deterioração da saúde mental e física.
Não acreditamos que a situação se possa modificar somente do ponto de vista psicológico e psiquiátrico, embora a nossa ação ajude e possa melhorar o estado emocional e facilitar a normalização de alguns parâmetros da saúde mental, possibilitando o começar de novo.
É fundamental que, do ponto de vista sociológico, saibamos enfrentar o problema, devolvendo à comunidade a convivialidade, a partilha e a solidariedade, diminuindo os fatores de exclusão, bem com minorar o risco de isolamento e da vivência solitária.
Voltar a proporcionar às nossas crianças tempo e espaço para brincar, de criarem as suas redes de suporte, promovendo a socialização e “lugares seguros” de convívio. Recriar os velhos pátios para humanizar os locais de habitação, incentivar as manifestações culturais de grupo, de modo a aumentarem as vinculações afetivas, o encontro de pessoas.
Aos idosos proporcionar formas de ativação física e social, ocupando-os com tarefas e diversões que os levem a sentirem-se acompanhados. Os tempos livres deverão ser, deste modo, fomento da cultura de hábitos de vida saudável e de humanização do quotidiano, do despertar da natureza. É deste modo que se pode criar uma boa qualidade de vida, aumentando a sensação de bem-estar e reduzindo o isolamento das pessoas.
A sociedade, dita do saber e da informação, não assimilou a sabedoria da experiência acumulada e criou um mundo virtual no qual se alienam os cidadãos e as comunidades. Ao “deveria, tenho de, preciso de…”, temos de acrescentar mais consciência e mais tempo para pormos o existir nas nossas próprias mãos, pois o que está em jogo é a qualidade da nossa vida e das relações com os outros e com o mundo e, no fundo, o nosso bem-estar e equilíbrio mental.
António Reis Marques,
Médico Psiquiatra
A V.reflexão é muito assertiva e plena de atualidade.Recentemente no Japão tomou posse o ministro da solidão.Que bom seria que soubéssemos inserir no nosso quotidiano as recomendações aqui mencionadas.É um facto indesmentível que a sociedade da informação/comunicação está a criar solidão,de entre os seus utilizadores e, portanto, urge fazer as adequações necessárias para que aquela sociedade nos ajude, sem nos tirar a felicidade e o bem estar mental.As intitiuições governamentais,as autarquias e,sobretudo as famílias, têm papel importante,na criação de laços efetivos e outros que criem bem estar físico e mental, inviabilizando a solidão!
ReplyMuito obrigado!
Excelente artigo que reflete na perfeição a realidade actual da vida. Um autentico alerta que merece a nossa reflexão. Estou à beira dos 78 anos de idade e muitos dos comentários da publicação atingiram-me particularmente. Parabéns
ReplyPara ler e interiorizar….
Um "artigo", simplesmente maravilhoso!
Que a "falta de tempo", deixe de ser desculpa para "atender" os outros.
Há sempre tempo,
Replyo que não há,
é a vontade de se dar com o coração …