As alterações do ritmo circadiano são comuns nos dois casos, seja por envelhecimento, seja pela existência de uma lesão neurológica, num quadro clínico de demência. São comuns, mas não são iguais

As demências, em qualquer das suas formas, são doenças referidas primariamente ao cérebro; ora o sono, enquanto processo psicológico, resulta – tal como a vigília – do funcionamento cerebral. Assim, não é de admirar que os processos demenciais se reflitam no sono.

A idade é o principal fator de risco para a demência, sobretudo a Doença de Alzheimer, onde o risco duplica a cada 5 anos, após os 65 anos. Simultaneamente, também é verdade que as alterações do ritmo circadiano no sono-vigília são comuns no processo do envelhecimento, mesmo na ausência de demência e há razões fisiológicas que o explicam.

O facto de, como espécie, os humanos funcionarem de dia e dormirem à noite resulta da presença de um relógio biológico, constituído por dois grupos de aproximadamente 20 mil neurónios localizados no núcleo supraquiasmático no hipotálamo anterior, próximo e com ligação direta à retina.

O principal sincronizador deste relógio biológico é a exposição à luz solar, que permite ao cérebro reconhecer quando é dia e quando é noite. A escuridão, após a exposição à luz, permite que o nosso relógio biológico inicie a libertação de melatonina, hormona que vai propiciar a entrada em funcionamento dos circuitos neuronais que promovem o sono.

Ora, no processo do envelhecimento, para além da perda esperada de alguns desses neurónios do núcleo supraquiasmático, a quantidade de informação luminosa que chega ao relógio biológico também está reduzida, seja por sedentarismo com menor exposição à luz do dia, seja por alterações oculares – cataratas, coloração amarelada do vítreo, degenerescência retiniana – o que conduz à perda de sincronização do ritmo sono-vigília para a frequência das 24 h do dia.

É claro que a idade, por si só, acompanha-se de alterações da estrutura do sono com diminuição da eficiência, maior fragmentação por despertares noturnos, mas também redução do tempo passado em sono profundo e do sono REM. E, por outro lado, os distúrbios do sono como a insónia, a apneia do sono ou os movimentos periódicos do sono são mais prevalentes com o aumento da idade.

Por outro lado, no quadro clínico das demências, associadas à progressiva perda de capacidades cognitivas, sobretudo nas relacionadas com a memória, são praticamente constantes as alterações do sono, que incluem a redução do tempo de sono (insónia), sono fragmentado, maior frequência de distúrbios respiratórios do sono (apneia do sono), de movimentos periódicos do sono associados a pernas inquietas e distúrbios do comportamento do sono REM (onde o indivíduo exibe comportamentos anormais durante o sono, habitualmente violentos, relacionados com o conteúdo do sonho).

Nos processos demenciais, as lesões neurológicas subjacentes, quer nos locais do cérebro onde se processa o sono, quer nos circuitos neuronais relacionados com a regulação circadiana, vão potenciar as alterações do ritmo sono-vigília. Já o tratamento destes distúrbios do sono, associados a uma demência instalada pode ser mais problemático e desafiante, dependendo muito do tipo de demência, do tipo de distúrbio do sono e da sua gravidade.

Existem algumas estratégias não farmacológicas como a exposição à luz (light therapy) no sentido de reforçar a sincronização do ritmo circadiano e que podia ter aplicação em particular na doença de Alzheimer, ou a estimulação cerebral profunda utilizável em algumas situações de doença de Parkinson, para além das medidas de carácter geral, relacionadas com a higiene do sono e que incluem o exercício regular, a restrição do sono diurno e a evicção de estimulantes como o café ou chá.

Do ponto de vista farmacológico, tem-se usado a melatonina que mostrou poder melhorar a eficiência do sono em alguns estudos; ou a trazodona, um antidepressivo com papel regulador do sono, em doses baixas e que mostrou poder aumentar o tempo total de sono, sem efeitos negativos cognitivos ou funcionais, ao contrário do que acontece com os hipnóticos, pelos efeitos adversos quando usados a longo-prazo, ou as benzodiazepinas cuja utilização pode mesmo aumentar o risco de demência.

Têm particular relevância as alterações do sono associadas ao compromisso do ritmo circadiano sono-vigília, com os doentes a apresentarem irregularidade dos períodos de sono e períodos acordado, ao longo das 24 h e que, na sua expressão extrema, se pode apresentar na forma do chamado Síndroma do Pôr-do-Sol (Sundown Syndrome). O doente torna-se particularmente hiperativo, mesmo agitado, com discurso incoerente e repetitivo, extremamente apelativo, quando surge a noite e, ao contrário, dormitando permanentemente ao longo do período diurno.

Como é fácil perceber estas são situações de enorme constrangimento também para os cuidadores e que, diga-se, não são fáceis de lidar. A tentação é utilizar hipnóticos nestes doentes durante a noite o que, obviamente, não ajuda nas manifestações do processo demencial em si.

José Moutinho

(Médico Pneumologista, com Competência em Medicina do Sono)

Sono, um estado vital

O sono é um estado fisiológico vital que influi no equilíbrio de todos os sistemas reguladores do funcionamento do organismo. As funções do sono incluem um papel no crescimento corporal, porque é durante o sono profundo que se produz a hormona do crescimento; a poupança e restauração da energia; regulação da temperatura corporal; diversas funções metabólicas e na imunidade, mas também nas funções neurocognitivas – em particular na consolidação da memória, função onde os diferentes estádios do sono concorrem de um modo articulado.

Por exemplo, o estádio N3, correspondente ao sono de ondas lentas (sono profundo) favorece a consolidação da memória declarativa; o sono REM beneficia os aspetos procedimentais e emocionais da memória; o estádio N2 (estádio intermédio entre o sono superficial e o sono profundo) relaciona-se com a consolidação da memória em sequências motoras.

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