Hoje, admite-se que há sinais de doença nesta melodia e que as peculiaridades estruturais desta obra podem, afinal, espelhar uma demência implícita. O Bolero de Ravel passou a ser um instrumento de estudo
O famoso bolero composto por Maurice Ravel em 1928, por solicitação da bailarina russa Ida Rubinstein, é seguramente uma das peças musicais mais conhecidas em todo o mundo. Conhecida por músicos, melómanos eruditos e amantes de música, coreógrafos e bailarinos, mas não só. Os neurocientistas apreciadores de música ou nem por isso, têm escalpelizado esta peça musical, nem sempre para deleite artístico, mas sobretudo à procura dos sinais da doença que afetou Ravel, que lhe roubou a criatividade e o silenciou.
Na realidade, o Bolero de Ravel tem sido escutado e auscultado incontáveis vezes, como se de um instrumento de avaliação cognitiva se tratasse, apreciado e julgado por neurologistas que buscam, por detrás do ritmo invariável da peça musical, encontrar o diagnóstico da terrível doença que devastou o seu criador. Existem inúmeros artigos publicados em prestigiadas revistas científicas, especulando sobre a natureza da demência de Ravel e que esta magistral obra de orquestra deixa transparecer.
Ravel desenvolveu de forma insidiosa um quadro de afasia progressiva (dificuldade na linguagem escrita e oral) com apraxia, descrito pelo célebre neurologista da época Théophile Alajouanine. A estes deficits associava-se uma perturbação na expressão musical, com preservação da compreensão musical, assim como de outras capacidades intelectuais.
A doença progrediu lentamente e Maurice Ravel morreu aos 65 anos, meia dúzia de anos após os primeiros sintomas e no decurso de uma cirurgia exploratória, realizada na esperança de se encontrar uma causa para a drástica deterioração. A cirurgia foi inconclusiva. Não tendo sido realizado estudo anatomopatológico, o diagnóstico exato da demência permanecerá especulativo, nunca se conhecerá e continua a ser motivo de investigação dos neurocientistas contemporâneos.
A doença neuro degenerativa afetaria a realização artística, e daí a atenção focada nas suas últimas obras, particularmente no Bolero, onde hipoteticamente se encontra refletida a perturbação neurológica subjacente. A repetição incessante do tema é assim interpretada como um sinal de doença. As peculiaridades estruturais desta obra podem, afinal, apenas espelhar a demência implícita.
O Bolero tem uma duração de catorze minutos e dez segundos, com uma melodia repetitiva e uniforme que é interpretada como uma forma pura de obsessão musical. O padrão monótono e repetitivo da composição é, hipoteticamente, uma forma de perseverança – a característica mais marcante de disfunção do lobo frontal.
Maurice Ravel sofreu provavelmente de demência frontotemporal, que cedo interrompeu a sua criatividade. Como ele próprio dizia: ‘Et puis, j’avais encore tant de musique dans la tête.’ (‘E então, eu ainda tinha muita música na minha cabeça’) O verdadeiro diagnóstico nunca se saberá. O melhor será mesmo escutarmos o Bolero de Ravel com curiosidade.
Cristina Januário
(Médica, Neurologista)
Se quiser saber mais:
Maurice Ravel’s dementia: the silence of a genius.
Vitturi BK, Sanvito WL.Arq Neuropsiquiatr.
2019 Feb;77(2):136-138
The “Ravel issue” and possible implications.
Alexoudi A, Sakas D, Gatzonis S.Dementia
(London). 2018 May;17(4):401-404
What makes Maurice Ravel’s deadly craniotomy interesting? Concerns of one of the most famous craniotomies in history.
Ayhan Kanat, S Kayaci, Acta Neurochir (Wien)
2010 Apr;152(4):737-42.
Que lufada de ar fresco!…
Creio que sofro deste problema e nunca encontrei
alguem que se debrucasse….
E aflitivo.
Vou ter consigo bem cedo,
ReplyDra. Cristina Januario..
Dra. Cristina Januário:
Muitos verdadeiros peritos de música clássica, também encaram o Bolero de Ravel, como uma ode ao mistério da vida, e como uma ode ao Criador.
ReplyO que acha?
O consumo excessivo e obsessivo de álcool poderá inverter a perceção humana? E alguém até douto ver no bolero de RAVEL um sinal de demência, em vez de uma homenagem a Deus?
Bom dia, como dirigiu a sua questão diretamente à Profª Cristina Januário, estamos agora em condições de lhe enviar a resposta às suas dúvidas “Muito obrigada pelo seu comentário
ReplySim, o efeito do álcool e outras drogas na criatividade humana tem sido muito estudado, é um tema muito vasto e interessante que mereceria outro debate…
Neste particular artigo – só me referi ao génio musical Maurice Ravel e, especificamente, a uma das suas últimas criações o “Boléro”. A construção melódica uniforme e repetitiva e a inexistência de progressão da obra levou a que muitos musicólogos vissem ser um sinal que refletia já a doença subjacente que o atormentou. Ravel desenvolveu um quadro demencial nos últimos anos da sua vida, e como foi contemporâneo de grandes nomes das neurociências foi escrutinado por todos, que viam com tristeza silenciar-se um enorme talento musical. “Dissecaram” as suas últimas obras para tentar entender o cérebro disfuncionante. Teria sido no hemisfério direito o inicio da afecção? Amusia, crise de criatividade… ou por outro lado o carácter repetitivo obsessivo do tema traduzia claramente uma forma de perseverança, atributos do lobo frontal? Especulações . Muito interessantes quando procuramos compreender o cérebro, a arte e a criatividade.
Nada disto se intromete com a beleza e singularidade da obra! E como muito bem diz,pode provocar em cada um o que a sua espiritualidade consentir.” Esperamos ter ajudado. Cumprimentos.