Sempre que me convidam para participar nos mais variados eventos, entrevistas para programas televisivos, rádio ou para a escrita de artigos (relacionados com a medicina ou de opinião), curiosamente termino a conversa sempre com momentos e histórias relacionadas com a minha prática ao longo destes anos.

Arrisco-me mesmo a dizer que são essas histórias que tornam a partilha ainda mais interessante, talvez por serem uma nova e alternativa visão de factos que para muitos são simplesmente comuns. Depois de vários pedidos, hoje inauguro este espaço inspirado em histórias e nos olhos de quem aqui passa e já passou. Muitos são os episódios que aqui espero partilhar, resultado de anos de experiência e conhecimento.

Jesus curou-o da cegueira quando saía de Jericó (evangelho de S. Marcos 10: 46 – 52)

Há 2000 anos recuperar a acuidade visual de um cego só era possível por Milagre. Hoje, continuamos a não poder fazer milagres, mas já somos capazes de recuperar muitos casos de perda parcial de visão.

Nas últimas décadas houve uma revolução no tratamento da cegueira curável, e eu estive e estou nessa revolução. Com Cunha Vaz e no Serviço de Oftalmologia dos HUC implantei as primeiras lentes intra-oculares de câmara posterior, em Portugal (a técnica atualmente mais usada), após remoção da catarata. Estávamos em Março de 1983. Apresentei trabalhos e participei em inúmeras reuniões científicas onde ouvi de tudo. Alguns elogios, muitas críticas e até acusações de que queria complicações para posteriormente as resolver com outra técnica, a vitrectomia, que já estava também a praticar. Sempre foi assim… a inovação teve sempre um preço, particularmente no país que criou e bajulou a lendária figura do velho do Restelo. Mas a caravana passou e aos poucos todos procuram apanhá-la e não raras vezes ultrapassá-la, sem o reconhecimento dos obstáculos que possam surgir no caminho.

A vida, a ciência, o querer fazer mais e melhor tem riscos, e não raras vezes um preço não justificado. Não vou descrever as técnicas cirúrgicas ou as indicações para a cirurgia da catarata, que deverá ser o médico oftalmologista a indicá-las perante cada caso clínico.

Mas permitam-me que vos conte um episódio real: um dia vi entrar no meu consultório um homem de 80 anos, alto, magro, todo inclinado sobre duas bengalas que o apoiavam como se tivesse quatros membros locomotores. Observei-o. Tinha catarata total no olho direito e no olho esquerdo,  com boa perceção e projeção luminosa. Disse-lhe que o poderia operar e que presumia que poderia voltar a ver. Decidiu ficar e ser operado aos dois olhos, o que eu aceitei com muitas reservas.

No dia seguinte quando o observei para ter alta, entrou no meu consultório em posição ereta perfeita, sentou-se na cadeira onde tinha estado no dia anterior e em tom austero afirmou: “se há deus, eu encontrei-o!”

Momentos depois abandonou o consultório e nunca mais nos voltamos a encontrar.

Se há Deus, Ele é o responsável por podermos cumprir a nossa missão como Médicos.

António Travassos

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