– O cair da noite e as dores nas pernas

As queixas de dores nas pernas acabam por desestabilizar o que poderia ser uma boa noite de sono. O estranho é que não salta à vista um motivo que justifique este tipo de dor. No entanto, as crianças queixam-se e se nuns casos acabam por adormecer, noutros há agitação a marcar a noite, com repercussões no sono

Há exatamente 200 anos, um médico francês – Marcel Duchamp – fez, pela primeira vez, a descrição de um quadro de dores nas pernas das crianças, a que deu a designação de “dores de crescimento”, por acreditar que estavam relacionadas com o seu crescimento.

Estas dores, que afetam cerca de 50% das crianças entre os 2-3 e os 12 anos, com um pico de incidência entre os 4 e os 6 anos de idade, podem ser muito incomodativas, localizadas às pernas, nomeadamente coxas, regiões gemelares (barriga da perna) e poplíteas (atrás dos joelhos). Normalmente, aparecem ao fim do dia, mais na hora de deitar e podem prolongar-se pela primeira metade da noite, com o frequente compromisso do início do sono.

Muito frequentes, aparecem por surtos de alguns dias e exigem habitualmente a intervenção de um dos pais para apaziguar a dor. A dor não tem um lugar definido – à pergunta “onde te dói?” nunca há um dedo a apontar, mas sim uma palma da mão que abraça a coxa ou a perna, e muitas vezes uma resposta como “Não sei…. é a perna, lá dentro”. Depois de uma massagem (com uma boa dose de carinho), aplicação de um pano morno, ou por vezes, um alongamento dos músculos das pernas e, mais raramente, um analgésico como o paracetamol ou o ibuprofeno, chega o sono conciliador. De manhã, a criança está completamente bem, pronta para a ida para a escola e para a brincadeira do dia seguinte.

Terá provavelmente esquecido mesmo o que se passou e não apresenta qualquer sintoma ou alteração na observação. Podem passar vários dias ou semanas antes de voltar a ter a dor novamente.

O mito das dores de crescimento

Ao longo das décadas foi persistindo este mito das dores de crescimento e à lamentação da mãe de que o seu filho tardara em adormecer por se queixar de dores nas pernas, logo o seu interlocutor retorquia “São dores do crescimento!

Isso depois passa!…”.

Um mito popular que foi despertando a curiosidade da ciência, nomeadamente sobre a sua etiologia. Trata-se de uma dor que não se acompanha de inchaço ou equimose, de vermelhidão ou comichão, habitualmente limitada aos membros inferiores, e sem outro sinal ou sintoma no organismo. A relação com o crescimento tem vindo a ser colocada em dúvida, já que outras partes do organismo também estão em crescimento nesta idade e, no entanto, não despertam dor. Por outro lado, os períodos de maior crescimento da infância (primeiros dois anos e puberdade) situam-se fora do período etário em que as dores de crescimento são mais frequentes.

Os estudos multiplicaram-se e várias hipóteses etiológicas foram sendo colocadas – menor tolerância para a dor, menor resistência óssea, alteração da circulação sanguínea, entre outros. Nenhuma destas hipóteses foi comprovada sendo, no entanto, consensual que não têm relação com o crescimento da criança. E assim até à atualidade, a causa das dores de crescimento permanece desconhecida, embora existam alguns fatores que se associem com alguma frequência, como problemas ortopédicos dos membros inferiores ou hiperlaxidão das articulações. Surgem frequentemente em crianças muito ativas, que brincaram muito durante o dia ou em alturas em que houve maior esforço físico. O diagnóstico é habitualmente clínico, sendo desnecessário o recurso a exames complementares.

… ou pernas inquietas?

Entretanto, há poucas décadas, uma situação clínica que se pensava ser do domínio dos adultos, foi identificada também na criança – a síndrome das pernas inquietas. Esta síndrome, que apresenta muitas semelhanças ou até sobreposições com as dores de crescimento, manifesta-se por sensações de desconforto, sobretudo a nível dos membros inferiores e até aos pés (mais raramente também membros superiores e/ou face), que surgem ao final do dia, com agravamento no repouso e necessidade premente de movimento para conseguir algum alívio. 

A perturbação pode ir para além do início do sono e prolongar-se pela noite, ocasionando um sono agitado e menos reparador do que o desejado, com repercussões no dia seguinte. Esta síndrome pode estar associada a alguma outra patologia, à toma de determinados medicamentos ou ter uma componente familiar, sendo frequente encontrar sintomas semelhantes num dos pais.

O esclarecimento destes casos pode exigir a realização de alguns exames complementares e, de entre as outras patologias, uma deficiência no metabolismo do ferro é um dos fatores mais frequentemente encontrado na criança. A administração de um suplemento de ferro pode contribuir para a melhoria significativa do quadro. Tem sido encontrada uma inter–relação significativa entre a síndrome de pernas inquietas e a perturbação de hiperatividade e défice de atenção (PHDA), contribuindo por vezes para o aumento da sintomatologia desta. A síndrome de pernas inquietas pode mesmo ser erradamente diagnosticada como uma PHDA. 

Uma localização e um horário quase sobreponível de ambas as patologias têm permitido que sejam colocadas no “mesmo saco”, não sendo assim feita a orientação adequada a cada uma delas, podendo as duas situações coexistir na mesma criança. Enquanto as dores de crescimento são consideradas benignas e com um fim habitualmente marcado pelo início da puberdade, a síndrome de pernas inquietas tem uma repercussão maior na quantidade e qualidade do sono podendo gerar algumas consequências pela sua perturbação – insónia, problemas de comportamento, compromisso neurocognitivo, e o prolongamento pela vida adulta.

Distinguir o que é diferente

A diferenciação entre estas duas situações de dores noturnas na criança pode representar um verdadeiro desafio, nomeadamente nas crianças mais pequenas, já que estas têm dificuldade em identificar e explicar os sintomas. O interesse na destrinça entre dores de crescimento e síndrome de pernas inquietas reside no facto de, enquanto a primeira é considerada uma situação benigna e transitória, a segunda pode ter repercussões no desenvolvimento e bem-estar da criança, além de estar relacionada com alguma patologia e beneficiar de tratamento específico.

Algumas particularidades que poderão ajudar na distinção entre as duas situações

(que estão essencialmente relacionadas com o fim do dia e noite) são as seguintes: 

  • dores de crescimento dores intermitentes (podem existir várias noites sem queixas) habitualmente bilaterais, localizadas aos músculos das pernas, assinaladas com a palma das mãos, sem melhoria com o movimento, habitualmente sem perturbação do sono depois de adormecer.
  • síndrome de pernas inquietas sensação de desconforto (dor, picadas, queimadura, ardor, formigueiro) habitualmente localizada às pernas e pés, mas por vezes também pode atingir os membros superiores; surge no repouso com uma necessidade premente de mobilização; frequentemente associada a sono agitado, com acordares repetidos e com repercussão no dia seguinte.

Há outras causas de dores nas pernas das crianças e para as quais é preciso estar atento, lembrando que nem as dores de crescimento nem a síndrome de pernas inquietas se caracterizam por dores persistentes ao longo do dia, por terem intensidade crescente, serem unilaterais ou localizadas às articulações e apresentarem sinais inflamatórios (inchaço, calor, rubor), nem determinam limitação da mobilidade da criança. Na presença de uma ou mais destas características é preciso procurar outra causa.

O sono adequado é extremamente importante para um saudável desenvolvimento, crescimento, cognição e comportamento da criança. Como estas situações podem acompanhar-se de perturbação do sono é importante estar atento e, na dúvida, obter uma opinião do médico de família ou do pediatra e, eventualmente, de pediatra especializado em medicina do sono.

Maria Helena Estêvão
(Médica Pediatra, com competência em Medicina do Sono)

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