A professora de “ouvido tísico” remeteu-se ao silêncio. Primeiro porque começou a ter dificuldade em entender o que lhe diziam, depois porque não percebeu que o avanço da surdez corre a par com a deterioração cognitiva

Sentada no canto da imensa sala de estar, a idosa tentava enrolar teimosamente o fio que saía dum pequeno saco de plástico amarfanhado numa prega da poltrona. Ao fundo da sala, a música altíssima denunciava a dificuldade de acesso das vibrações sonoras aos centros auditivos das residentes no Lar.

Com gestos desajeitados, não conseguia retomar a rotina do bordado. Sentia-se confusa e desorientada!… Professora toda a vida, sempre fora um exemplo de rigor e sensatez, muito respeitada e até temida pela exigência que impunha aos “seus meninos”. Mas já nos últimos anos antes de se reformar, associada a uma arreliadora dificuldade em perceber o que diziam, constatava que às vezes, por momentos, perdia a noção do tempo e até do local onde se encontrava!

Sempre ouvira muito bem. “Ouvidos de tísica!” – dizia, orgulhosa quando alguém se referia à sua espantosa aptidão auditiva. Com o passar do tempo, começou a ter dificuldade em perceber o que diziam. “Eu oiço. Mas não compreendo!” – justificava muitas vezes à filha, quando lhe pedia para repetir a frase.

Emigrante na Suíça, a filha já a tinha levado à “casa dos aparelhos, há uns anos, no Verão, quando cá esteve de férias. Mas devolveu-os logo. Ainda os experimentou uma semana, mas sentia-se muito mal “com aquilo”: comichão nos ouvidos, apitavam desalmadamente cada vez que virava a cara para o lado esquerdo, “e o vento!?” – um desespero. Além disso “ouvia mais alto, mas não percebia nada na mesma!”. “E caros!”

A filha voltou para a Suíça e a antiga professora deixou de lhe atender o telefone: “para quê? Não percebia nada!”

No Lar, as meninas, algumas suas antigas alunas, tratavam-na como a todas as outras: “então, avozinha, já deixou cair outra vez a manta!” – gritavam-lhe aos ouvidos, e ela lá se ia ajeitando como podia.

Um dia e também nas férias, a filha foi buscá-la ao Lar logo de manhã cedo e levou- a a um médico.

Após observar os ouvidos, o especialista mandou fazer um exame para verificar o grau de surdez. Falou nos aparelhos auditivos, nas vantagens de iniciar cedo a correção da surdez, no papel fundamental das próteses, não apenas na melhoria da audição mas também porque atuam como terapia, atrasando a progressão da surdez. E, para além de tudo isso, a adaptação das próteses auditivas atuaria ainda como fator de prevenção da degradação psicológica, do isolamento no idoso, da deterioração cognitiva, da evolução das doenças degenerativas cerebrais…

Percebeu pouco do que o médico disse, mas notou que a filha saiu cheia de esperança. “Até que enfim, percebi o que se passa. A mãe não pode andar assim… qualquer dia ainda fica maluquinha!”. Foram à casa dos aparelhos, compraram os mais sofisticados: “quer o dinheiro para quê? “; Agora, já lhe posso telefonar!”. Uma semana depois voltou para a Suíça.

Ainda tentou colocar os aparelhos algumas vezes. Mas às vezes caíam-lhe, não dava pelo “acabar das pilhas”, o eczema nos ouvidos era uma tortura. Deixou de saber onde os tinha guardado…

No Verão seguinte a filha voltou a levá-la a um médico, desta vez um neurologista, aconselhada pelo médico do Lar. Após pouco tempo do início da consulta, parecia-lhe que trocavam uma conversa exaltada: falavam sobre ela, mas ela não percebia nada. Olhava-os sem inquietação, sem temor, lá pelo meio da vozearia pareceu-lhe ouvir a palavra Alzheimer… mas ela só queria voltar para o canto da vasta sala onde fazia crochet.


Luís Filipe Silva
(Médico, Otorrinolaringologista)

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