Aos 3 anos de idade deixou-se fascinar pelos telefones, depois foram os motores e só mais tarde lhe indicaram o caminho da Medicina. Decidiu seguir o conselho de gente experiente. Fez-se médico e cirurgião de Oftalmologia. O interior do olho humano é a sua sala de trabalho, dezenas de milhares de olhos passaram pelas suas mãos. Por detrás, há algo que o move, alguma “loucura”, a sobrevivência e um desejo de pegada que quer deixar na cirurgia da retina. Segue-se o percurso de António Travassos.

“Quando eu for grande”… O que sonhava ser?

Há várias fases na ideia de “Quando eu for grande”. Com três anos, a criança quer ser aquilo com que se impressiona e, quando eu tinha essa idade, montaram um telefone em casa dos meus pais. Deixei-me impressionar por essa tecnologia e com o facto de ser possível falar com alguém que estava do outro lado da linha, isso levou-me a querer copiar esses técnicos. Fui crescendo e procurei perceber como agiam os engenheiros. Comecei a dedicar-me às máquinas e, nessa fase, os motores foram a minha predileção, os motores de explosão, a forma como eles funcionavam, o ser capaz de afinar os platinados… A Medicina não fazia parte dos meus planos.

 

Mudou de ideias e quis ser médico e cirurgião. Naquele tempo era comum um alentejano querer ser médico? Bastava querer ser?

Não. E eu não tinha ninguém na família que fosse médico. Foi o meu professor de Ciências que me alertou para o jeito com que eu dissecava animais, depois foram os técnicos de orientação profissional que também me direcionaram para a Medicina.
Ser médico foi, efetivamente, em termos profissionais, o melhor que me podia ter acontecido, mas só compreendi isso próximo dos 40 anos. Ser médico, não é só ser um bom cirurgião, o médico tem de saber interpretar com respeito a obra de arte que é a pessoa, tem de ser capaz de compreender o doente, tem de o respeitar.
Foi esta relação que fui aprendendo com o tempo e é esta relação que hoje cultivo e que mais me preocupa.

 

Coimbra foi o destino obrigatório e o Serviço Nacional de Saúde a “escola”. Um e outro foram novos ingredientes que entraram na sua vida, mudaram a sua maneira de sentir?

Quando vim para Coimbra acreditei que a tradição da cidade me poderia dar uma preparação completamente diferente. Nunca me arrependi, mas esta cidade tem características muito especiais. Tem todas as condições para ter um Serviço Nacional de Saúde (que eu sempre defendi e defendo) que possa, de facto, fazer a diferença e constituir a grande diferenciação no tratamento dos doentes.

 

E o SNS faz essa diferença em Coimbra?

Não. As pessoas estão, fundamentalmente, desmotivadas. Coimbra tem todas as condições para ter o melhor hospital deste país. Apesar de eu ter constituído uma unidade de saúde privada em Coimbra, para mim, é importante que os Hospitais da Universidade de Coimbra sejam a grande referência de saúde no país. Tenho muito respeito pelos profissionais que lá trabalham. É uma instituição secular, é o “meu” hospital e eu gostaria de o ver projetado, permanentemente atualizado e com a certeza de que os doentes são ali muito bem tratados.

 

De Coimbra seguiu para os EUA e foi um português na América, sentiu-se emigrante?

Claro que sim. Mas fui um emigrante privilegiado. Tinha onde dormir, um rendimento fixo (uma bolsa de estudo) e uma boa relação com o diretor do Serviço para onde fui trabalhar. Foi extremamente importante, porque me permitiu ter uma visão completamente diferente da Oftalmologia e, quando voltei a Portugal, trazia essa formação, essa capacidade que ali desenvolvi. Tive a oportunidade de entender as técnicas mais sofisticadas da cirurgia de então, exercitando em olhos de animais. Em Coimbra ou em Portugal, isso era perfeitamente impossível.

 

O doutoramento era um percurso inevitável e obrigatório?

Não! Cheguei a pensar no doutoramento, mas nunca senti vocação para ser professor. A minha relação com a Medicina foi sempre procurar tratar os doentes o melhor possível. O doutoramento não me seduziu. Quando vim estudar para Coimbra, escolhi esta cidade porque a Faculdade de Medicina tinha um grande prestígio na altura. Mais tarde, percebi que as coisas tinham de mudar para que esse prestígio fosse uma grande verdade. Ou fazemos o melhor ou não sobrevivemos na “selva”. Com os animais passa-se o mesmo.

 

Há alguma pessoa(s) que o marcou e que tenha mudado o seu destino?

Houve, os meus pais.

 

Não é essa a função de todos os pais?

Para mim, os meus pais foram muito importantes, mas também o ambiente em que eu tive a felicidade de ter nascido. Os meus pais sempre me ensinaram o respeito pelos outros e isso foi muito importante. Hoje, é aquilo que eu mais cultivo. Eu sou um elemento de uma sociedade, em que cada um de nós tem de fazer o melhor. Não se pode ficar à espera que os governantes ou outros corrijam ou melhorem esta sociedade. Cada um de nós tem, de facto, de fazer o melhor.

 

O que o move, o que faz com que não baixe os braços e precise sempre de reinventar?

Se calhar alguma loucura, tenho sempre necessidade de encontrar a melhor forma, também para sobreviver mas, fundamentalmente, para deixar uma marca. E a pegada que eu posso deixar é a marca que consigo incutir à minha cirurgia, com a preocupação de procurar sempre o melhor para os meus doentes. Essa é a marca que um médico oftalmologista tem que conseguir: deixar os seus doentes a ver bem. Se possível, também gostaria de os deixar a ouvir bem, por isso trabalho num centro cirúrgico. Gostaria de os deixar com todos os órgãos do sentido completamente apurados e há um que eu considero especialmente importante, que é o “tacto”. Se não tivermos tacto na forma como estamos na sociedade, provavelmente, a sociedade nunca se equilibrará.

 

Houve alguma cirurgia que o deixou mais receoso, que o fez ter receio?

Não, a cirurgia para mim é sempre simples. Encaro-a com a maior naturalidade.
Sempre que faço uma cirurgia tento respeitar a obra de arte que tenho em mãos. A perfeição de um olho, a forma como a natureza o fez evoluir é, de facto, demasiado grande para que nós possamos alterá-la ou possamos cometer qualquer gesto que perturbe essa grandiosidade. Nunca me comparei àquele que é capaz de alterar a obra de arte.

 

E houve alguma cirurgia que o deixou muito orgulhoso?

Fico sempre orgulhoso quando faço o melhor pelos doentes e consigo que eles recuperem a visão. É nisso que eu me revejo, que justifica o meu trabalho e a minha profissão.

 

É médico, é cirurgião e ainda insiste noutros papéis, assume o de administrador, gestor, arquiteto, engenheiro, físico, jardineiro (e devo ter esquecido algum), como gere o tempo e que importância dá às horas?

Uma importância relativa. Utilizo o tempo para fazer o que é necessário que eu faça. Procuro fazer da melhor forma aquilo que me é solicitado ou sobre o que tenho de decidir. Provavelmente, ter vivido num monte durante vários anos e ter contactado com diferentes profissões, permite-me encarar com facilidade muitas dessas áreas, sem que eu tenha preparação específica, mas sempre com a preocupação de, como oftalmologista, não ser míope e ser emetrope, alguém que consegue ver bem.

 

O que o irrita profundamente nas pessoas?

Nada. Mesmo quando não gosto das atitudes das pessoas tenho de as respeitar, provavelmente os outros também se irritam com os meus comportamentos.
Acho que o respeito é mesmo o mais importante.

 

Qual o valor que dá a um sorriso?

É extremamente importante. Gosto das pessoas que sabem sorrir. Quando estou feliz gosto de sorrir. Um sorriso pode sempre mudar alguma coisa.

 

Alguns dos seus doentes, descrevem-no como uma pessoa pouco simpática. Um médico tem de ser simpático?

Um médico tem de ser fundamentalmente um bom profissional e tem de respeitar os doentes. A simpatia é sempre relativa. A minha preocupação é respeitar o doente e fazer tudo para que aquela pessoa possa recuperar. É essa a enorme responsabilidade de todo e qualquer médico, fazer sempre o melhor pelos seus doentes.

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