
O sono das crianças assume uma importância relevante para a sua saúde e bem-estar, mas não só. A repercussão do défice de sono iniciado na infância pode vir a manifestar-se na idade adulta. Quantidade e qualidade são dois ingredientes importantes
Não é possível viver sem dormir. O sono é absolutamente necessário para a manutenção da vida em geral, e em particular no restabelecimento de vários sistemas do organismo, na conservação de energia, na regulação da temperatura corporal, na defesa das infecções, no crescimento e desenvolvimento do sistema nervoso central. A organização do sono baseia-se num processo complexo e a alternância dos períodos de sono e de vigília (estado de acordado) depende de vários factores, internos (idade, hormonas, genética….) e externos (ambiente, factores sociais,…).
Nas crianças, em particular, para além da função de repouso, o sono tem um papel extremamente importante em funções cerebrais de que são exemplo a consolidação da memória, a organização e abstracção do pensamento, a criatividade, a rapidez de reacção.
A duração do sono é um aspecto que sofre alterações significativas durante o desenvolvimento da criança. A relação entre tempo de sono e vigília vai sofrendo uma inversão: desde uma média de 16 horas de sono por dia no recém-nascido, até um valor médio de 7 a 8 horas no adulto jovem. Nos primeiros dias e semanas de vida, os períodos de sono e vigília vão-se sucedendo quase sem distinção entre dia e noite. Até aos 5 – 6 anos de vida, há uma parte do sono que é distribuída por sestas diurnas e a diminuição diária do sono faz-se sobretudo à custa do sono diurno, isto é, das sestas. Nos anos seguintes, a redução do tempo de sono é feita sobretudo à custa do sono nocturno.
Para que o sono seja repousante e retemperador, não é só o número de horas dormidas que importa mas também a sua qualidade. Uma criança pode ter estado muito tempo na cama, e no entanto ter dormido tempo insuficiente porque adormeceu muito tarde (por ter estado no computador/telemóvel/playstation ou por estar dependente de certas rotinas) e/ou acordou muitas vezes durante anoite (por ressonar, sono agitado ou ter determinados hábitos). Portanto um sono calmo e contínuo pode ser mais benéfico para uma criança do que um sono retardado e entrecortado, mesmo que este seja de muito maior duração.
Os pais, por vezes, questionam-se se o seu filho dorme um número suficiente de horas. Cada criança tem as suas necessidades individuais e ritmo próprio que os pais vão aprendendo a conhecer. Um número satisfatório de horas de sono ajuda habitualmente a criança a ficar mais bem-disposta, pronta para brincar, mais disponível para prestar atenção e concentrar-se, e até à “desaceleração” no caso de algumas crianças consideradas demasiado activas.
Há determinados comportamentos e sinais que podem constituir indicadores de falta de sono, que podem diferir de acordo com a idade da criança: mau-humor, dificuldade em acordar, dificuldade em prestar atenção nas aulas e de aprendizagem; e ainda, birras e hiperactividade nas mais pequenas; ou mesmo sonolência, agressividade e comportamentos de risco nas mais velhas. Estes sinais podem, no entanto, ser muito subtis e só quando a criança tem períodos mais longos de sono adequado é que aqueles sinais de défice de sono são reconhecidos retrospectivamente. A tolerância ao défice de sono apresenta também uma certa variabilidade entre as crianças.
Uma forma prática de os pais terem uma ideia das necessidades de sono do seu filho é programar, durante um período de férias, deixá-lo dormir até que acorde espontaneamente na manhã seguinte, durante pelo menos três dias e, simultaneamente, controlar o seu comportamento ao longo do dia. Se a criança se apresentar de bom humor, com uma actividade normal a funcionar “no seu melhor”, poderá pressupor que a média das horas dormidas nessas noites constituirá a sua necessidade, em termos de duração de sono.
Os problemas relacionados com a hora do deitar e início do sono estão entre os factores que determinam mais frequentemente a duração do sono. Para a maioria das crianças, as exigências escolares ou profissionais dos pais determinam a hora de levantar de manhã. Em contrapartida, a hora de início de sono é muito mais negociável e é determinada pelas necessidades fisiológicas da criança e por múltiplos factores psicossociais intrafamiliares, de que se destacam os novos estilos de vida e a utilização crescente de tecnologia. Os mecanismos pelos quais os vários equipamentos electrónicos podem alterar o horário do início do sono são: atraso da hora de adormecimento ou dos comportamentos que promovem o início do sono, consumo simultâneo de bebidas contendo cafeína, exposição ao fim do dia a luz intensa que interfere com a produção da melatonina (uma das hormonas que controla o ritmo do sono), o ficar mais desperto após um vídeo-jogo ou um filme de acção, enviar mensagens ou participar num chat.
Os adolescentes têm ainda uma tendência para um atraso do período de sono (um deslocamento adormecer e de levantar). Esta condição, que é natural neste período da vida vai colidir com as obrigações escolares e sociais, pelo que, particularmente no período da manhã, a sua atenção e desempenho escolar sofrem uma importante repercussão. Há escolas nos Estados Unidos em que o horário de início escolar dos adolescentes é mais tardio para minimizar o período de sonolência e/ou a privação do sono que é característico deste grupo etário.
A habituação a esquemas de rotina na infância promove uma duração de sono mais adequada às necessidades da criança e abre o caminho para um menor desvio na adolescência.
Um sono de boa qualidade e quantidade num adolescente é um factor a favor de pensamento mais organizado, previsão mais adequada de acontecimentos e antecipação de consequências. Para além da relação com problemas da esfera cognitiva e comportamental (fraco desempenho escolar, dificuldades de concentração e aprendizagem, hiperactividade, agressividade, sonolência, comportamentos de risco no adolescente), a duração insuficiente de sono tem vindo a ser cada vez mais relacionada com a obesidade a curto e a longo prazo, e outras situações do foro orgânico como hipertensão arterial, doença coronária, diabetes.
A repercussão do défice de sono iniciado na infância poderá vir a manifestar-se na idade adulta. Estes factos, aliados à constatação de que houve um declínio de mais de uma hora na duração diária do sono das crianças ao longo do último século, tem preocupado a comunidade científica.
O sono das crianças assume uma importância relevante não só na sua saúde e bem-estar, como indirectamente na dos pais. Uma noite calma e repousante para os pais reflectir-se-á, certamente, de forma positiva na sua vida familiar, social e profissional.
Maria Helena Estêvão
(pediatra, especializada em Medicina do Sono)
Nota: Por opção da autora, este texto não foi escrito ao abrigo do novo Acordo Ortográfico
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Dra. Maria Helena Estêvão
Muito obrigada pela exposição, muito bem estruturada e clara, respondendo à maioria das nossas questões diárias, com filhos em idade escolar (infantário e 1º ciclo).
Com os melhores cumprimentos
ReplyFilipa de Aço e Borges Faria Moita
Obrigada pelo artigo.
ReplyTenho uma bebé com 16 meses que faz muitas sestas durante o dia e por vezes fico preocupada por pensar que ela dorme demais e que pode haver alguma razão de saúde por trás disse… No entanto, ela é muito saudável, bem-disposta, brincalhona, cheia de energia e de teimosia 🙂 provavelmente este meu receio não tem fundamento…
Aos 16 meses o número de sestas é bastante variável. Poderá, ainda, acontecer que o período de sono nocturno da sua filha seja mais curto, estando as restantes necessidades em sono distribuídas ao longo do dia. É de esperar que à medida que vai crescendo, o número e/ou duração das sestas vá gradualmente diminuindo (ou ser substituído por 1 sesta de maior duração). É muito importante que a sinta de boa saúde, mas se o tempo de sono diário não reduzir gradualmente, da forma como esperaria, fale com o médico assistente da sua filha.
ReplyMuito obrigada pelo seu comentário. Em breve ela terá uma consulta e o melhor então será colocar essa questão à médica.
ReplyAcho que ela deve estar a repartir uma suposta sesta grande por 2 ou 3 mais pequenas durante a tarde… Todas juntas não devem ultrapassar as 3 horas. Mas vou ficar atenta e ver isso melhor com a pediatra.
Muito obrigada e bom trabalho!
Marta
Por razões familiares vivo com uma neta de 12 anos. Ela sempre foi de difícil adormecer e não dormia muitas horas em criança ( nunca dormia a sesta no infantário). Hoje, na puberdade continua a recusar deitar-se cedo, porém, de manhã , tem muita dificuldade para acordar o que cria, por vezes, situações de stress entre nós.
Era uma pequenina com uma memória fantástica e com capacidade para estar a brincar e ouvir as conversas dos adultos, interferindo por vezes. Hoje tem muita dificuldade de concentração nas aulas (frequenta o 7º ano num colégio onde anda desde os 2 anos), só memoriza o que de facto lhe interessa e é uma aluna média.
Que medidas tomar para que ela não continue neste desgaste intelectual? Dormir mais horas…deitar-se mais cedo? Mas como conseguir isso ? Que estratégias adotar?
Atentamente,
ReplyCeleste Guido
A Dr. Helena Estêvão esclarece que, no início da adolescência há com grande frequência um atraso no ritmo fisiológico do sono, isto é, a tendência natural é para adormecer mais tarde e acordar mais tarde. Como acordar mais tarde nem sempre é compatível com as obrigações escolares, o tempo de sono fica reduzido. Este défice de sono pode ser parcialmente responsável pela dificuldade de concentração e memorização.
ReplyO primeiro passo para minorar o problema será tentar cumprir as Regras de higiene do sono da criança e do adolescente que podem ser consultadas em
https://www.apsono.com/index.php/pt/centro-de-documentacao/centro-de-doc/52-higiene-do-sono-da-crianca-e-do-adolescente.
Se a sua aplicação apresentar dificuldades ou for ineficaz, deverá consultar o médico para evitar que o problema se torne crónico.
Adorei o artigo e mais uma vez estão de parabéns nos artigos escolhidos, pois quase sempre vêem de encontro aos nossos problemas…Por falar em problemas, tenho um filho com 20 anos que tem imensa dificuldade em adormecer…ele deita-se cedo, sem tecnologias perto dele, isso eu garanto, mas normalmente só adormece madrugada dentro…ele levanta-se muito cedo, pelas 6h30m, pois tem aulas na faculdade às 8h; o que ele me diz é que “não consegue adormecer porque não sente sono.”Faz-me imensa pena acordá-lo de manhã, porque tenho sempre a noção de que ele não descansou o suficiente.
ReplyO que faço?
Muito obrigado
Fátima Amaro
Sobre a questão que nos coloca o Dr. José Moutinho esclarece que, na ausência de outras informações, a situação que descreve é compatível com a presença de um Síndroma de Atraso de Fase. No que respeita ao ritmo sono-vigília existem dois padrões extremos: o denominado padrão matutino, ditos “cotovias” ou com avanço de fase que sentem sono e, portanto, necessidade de dormir, cedo na noite e o padrão vespertino, ditos “mochos” ou com atraso de fase e que só sentem necessidade de dormir tarde durante a noite. Estes tipos de padrões têm base genética e estão associados à produção hormonal de melatonina.
ReplyIndependentemente desde facto, todos têm as suas necessidades individuais de sono, de modo que aqueles com padrão de atraso de fase têm de se levantar cedo por obrigações sociais ou profissionais podem ocorrer em situação de privação de sono.Esta parece ser a situação do seu filho.
Acresce que durante a adolescência existe, fisiologicamente, um atraso de fase associado a um atraso na produção de melatonina. o que faz com que nestas idades haja tendência para que o adormecer seja mais tardio. Tendência esta, eventualmente, agravada por questões comportamentais: como os adolescentes não sentem sono à hora conveniente para adormecer ocupam o tempo em tarefas eventualmente activadoras que prolongam a situação. Deste modo e com base no que descreve sendo a situação compatível com Síndroma de Atraso de Fase (constitucional ou transitória associada à idade) convém sublinhar que, não sendo propriamente uma situação patológica, se interfere com as actividades diárias pode necessitar de alguma intervenção dirigida. Esperamos ter ajudado.