Uma obsessão, um corte “cego” ou muito mais do que se pensou até aqui? O destino do freio curto da língua não está traçado e é discutível

Doente observado ao primeiro mês e 23 dias. Teve consulta na primeira semana de vida, no centro de saúde, onde foi feito controlo do peso e colheita para diagnóstico precoce. Nova consulta com o médico que se julga ser o pediatra assistente, aos 12 dias de vida, e três dias depois para observação do cordão umbilical caduco. Ao mês e 23 dias voltou ao pediatra.

Durante esse espaço de tempo, por cólicas, tinha consultado e tido várias sessões com:

  • Um osteopata, que fez “massagem sacro craniana, para libertação do stress muscular”;
  • Uma terapeuta de amamentação, que diagnosticou anquiloglossia;
  • Uma dentista, também ela consultora de amamentação e especialista em frenotomia por laser;
  • Um cirurgião pediatra especialista em fenda palatina e frenulectomia por tesoura.

A pressão para a frenotomia foi agudizada pela existência de um caso nos antecedentes familiares e que fizera este procedimento, mas também pela frequência de presença em fórum de mães, todas com filhos devidamente frenulotomizados, ou seja, sujeitos ao procedimento cirúrgico que excisa completa ou parcialmente o freio, que nasceu curto.

A criança nasceu com o freio da língua curto ou anquiloglossia (em línguagem médica), uma mobilidade limitada da língua, uma vez que a pequena estrutura do ligamento que liga a boca à parte inferior da língua é curta. O problema é inato e dizem que em França, em séculos passados, as parteiras, com a unha mais afiada, cortavam os freios dos recém-nascidos, logo após o parto. E ao terceiro dia, em nova vistoria, acabavam o trabalho, se necessário fosse. A pediatria moderna acabou com essa obsessão.

Quando eu era interno e se liam revistas pediátricas na biblioteca do velho Hospital Pediátrico, li dois textos inesquecíveis. Um era The Fate of Foreskin, de Douglas Gairdner, O Destino do Prepúcio, o relato de como a circuncisão ficou remetida a uma prática obsoleta ou a um ritual religioso, e tinha afinal tão poucas indicações. O outro era o livro incontornável do grande pediatra inglês Ronald Illingworth, The normal child, cuja primeira edição data de 1953 e foi reeditado ininterruptamente até meados dos anos 90. Dizia Illingworth: “Alguns pediatras ainda aconselham a secção do freio lingual. Isso é completamente errado”.

E esse foi o entendimento comum até ao final do século XX. Nos anos 90, um artigo veio contrariar este entendimento. Num artigo muito polémico, Mukai, no Japão, relacionou o freio curto da língua com alterações da função respiratória e com a Morte Súbita do Lactente. E, mais tarde, fez-se a associação da anquiloglossia ao aleitamento materno e às dificuldades no seu estabelecimento e manutenção.

No verão de 2004, Elisabeth Coryllos escreveu numa newsletter da Associação Americana de Pediatria uma comunicação em que propôs uma categorização dos freios curtos em 4 tipos, cada um mais grave do que os outros: o freio na ponta, com a língua em coração.

O freio inserido 2 a 4 mms atrás, e o pior de todos, curto e grosso com achatamento da língua, o freio curto de tipo 4. Nesse artigo surgem em destaque as formas de apresentação clínica da anquiloglossia: na mulher, dor nos mamilos, gretas e mastite, hipogalactia, frustração ou desapontamento materna com o aleitamento, desmame precoce. No lactente, má coaptação e sucção, clique ouvido durante a mamada, má progressão ponderal, cólicas ou irritabilidade, fadiga na mamada, arqueamento do corpo para longe da mama, uso do mamilo como chupeta, adormecimento durante a mamada.

Todos estes freios devem ser cortados, segundo Coryllos. O procedimento é fácil, o freio deve ser cortado rente à face inferior da língua, as complicações são raras. A autora garante que não há dor, embora aconselhe paracetamol durante 24 horas e anestesia local. O procedimento tem tanto mais sucesso, quanto mais precoce. Aconselha-se ligação permanente a consultor de lactação após a cirurgia.

A autora não revela quantas crianças observou, como obteve o score que apresenta ou como foi validado. Não há estudos posteriores de confiabilidade.

O score mais utilizado e mais citado é, no entanto, o Hazelbaker Assessment Tool for Lingual Frenulum Function, o ATLFF, na gíria. Foi publicado em 1993, numa tese de mestrado do Paci􀏐ic Oaks College, na California. A tese não está acessível pelo que, mais uma vez, se desconhece como é que a pontuação foi construída.

Mas os dados estavam lançados. Nos USA e no Canadá, e com o habitual atraso em Portugal, o freio da base da língua estava tramado.

Há cinco anos ocorreu um pequeno escândalo. A revista Clinical Anatomy dedicou um número especial à Pediatria, onde Nikki Mills e colaboradores, de Pretória, África do Sul, apresentam aquilo que descrevem como a primeira publicação sobre a anatomia do freio. Ao contrário das descrições anteriores (sem alteração desde a Anatomia de Gray, em 1858) que encaravam o freio como uma simples prega da mucosa, a estrutura dos freios que dissecaram é mais complexa e com grande variabilidade na sua estrutura.

Citando estes autores “o freio é uma estrutura em camadas, formada por mucosa oral, e por uma aponevrose do pavimento da boca. Pode conter fibras do genioglossus e, pior do que tudo, tem uma inervação por ramos do nervo lingual, superficiais, a partir da superfície ventral da língua. Esta fáscia do pavimento oral suspende as glândulas sublinguais, vasos, e fibras do genioglosso. O freio é uma prega da fáscia, forrada por mucosa oral.”

O freio era muito mais do que se pensava e este trabalho veio por a nu a ignorância da anatomia do freio, o conhecimento restrito do seu papel na estabilidade da língua durante o movimento e das consequências da frenectomia, seja qual for o método utilizado.

Borowitz faz uma pesquisa de trabalhos que tinham analisado as implicações do freio curto (cuja própria definição é controversa) na amamentação. Identifica cinco publicações, que revê com minúcia e conclui que, na vasta maioria, tal correlação não existe. E em seguida vai tentar perceber se há evidência de melhoria após frenulectomia, para concluir que é metodologicamente muito difícil de concluir se há benefícios após a avaliação imediata, por entretanto ocorrerem outras intervenções de confusão.

Em resumo, é difícil defender um procedimento válido para o freio de língua curto:

  1. A definição é controversa;
  2. Uma estrutura que, até recentemente, não se conhecia a anatomia, mas que se sabe que a composição envolve fibras musculares e ramos nervosos.
  3. A função na estabilização e no movimento da língua durante a amamentação é imperfeitamente conhecida.
  4. A correlação clínica é fantasiosa, quer na vertente neonatal, quer materna.
  5. O benefício é discutível e as complicações podem existir.

Claro que, para quem assistiu ao destino do prepúcio é quase forçoso pensar que o desvio para o freio da língua da obsessão reparadora, representa uma regressão infantil freudiana, do genital para o oral. Cabe ao leitor decidir se isso lhe agrada.

Luís Januário
(Médico, Pediatra)

Glossário:

Freio da língua: estrutura situada entre a face inferior da língua e o pavimento da boca.

Anquiloglossia: freio curto, com inserção anómala, impedindo os movimentos normais da língua.

Frenulectomia ou frenectomia: procedimento que consiste em excisar completa ou parcialmente o freio por métodos cirúrgicos.

Frenulotomia, ou frenulotomia: Secção do freio lingual.

Fascia: membrana de tecido conjuntivo fibroso, aponevrose.

Hipogalactia: diminuição da produção de leite.

Genioglossus: músculo extrínseco da língua que constitui o pavimento da boca, e permite a protrusão da língua.

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