Se a medicina hoje praticada está a anos-luz da realizada no passado, é também verdade que estamos à beira de uma transição monumental para aquilo que será a medicina 4.0. A humanidade conquistou o planeta e está à beira de adquirir as ferramentas que vão redefinir a sua própria biologia. O céu é o limite. Estamos prontos para essa nova responsabilidade?

Nos primeiros passos da história da medicina o conhecimento era pouco divulgado e a prática clínica assentava na experiência pessoal de cada médico, misturada com alguma superstição. Os médicos estavam treinados para um diagnóstico e tratamento assente no exame objetivo do doente, utilizando armas terapêuticas rudimentares à base de produtos naturais. A evolução tecnológica e científica ainda não tinha ocupado o seu lugar.

O segundo patamar da evolução dos cuidados médicos foi alcançado com o aparecimento dos primeiros instrumentos auxiliares de diagnóstico, como o microscópio ou o raio-X, com os avanços da compreensão da fisiologia e anatomia humanas, com o aparecimento das primeiras formas de terapêutica farmacológica dirigida, como a antibioterapia, vacinação, técnicas de assepsia e anestesia e com a aplicação rigorosa do método científico aos cuidados prestados. Pela primeira vez, a medicina adquiriu armas para combater e prevenir de forma eficaz as doenças infeciosas.

Os atos cirúrgicos passaram a ser realizados em segurança e sem dor. A organização das enfermarias, hospitais e outros locais de prestação de cuidados médicos modificaram- se por completo, refletindo os conhecimentos adquiridos. O escrutínio contínuo e a apresentação de achados, experiências e resultados, discutidos em sociedades científicas geraram uma vaga de novo conhecimento.

As últimas décadas do século XX, bem como a primeira do século XXI, foram modeladas por uma evolução tecnológica exponencial, em particular nas áreas da eletrónica, computação, sistemas de informação, comunicação e automação. Estes avanços deixaram a sua marca e contributo na medicina. Técnicas de imagem em corte, como a tomografia computorizada e ressonância magnética, possibilitadas por avanços da física nuclear, eletrónica, computação e miniaturização permitiram, pela primeira vez, a visualização não invasiva, da anatomia e função do interior do corpo humano.

Avanços na área da genética permitiram o diagnóstico precoce de doenças hereditárias, melhor compreensão dos processos de funcionamento interno do organismo e avanços marcados na ciência forense. Avanços da engenharia química e farmacologia permitiram o aparecimento de muitos novos fármacos em gerações sucessivas, bem como dos primeiros medicamentos construídos de raiz para atuar numa determinada doença. A aplicação de conhecimentos das áreas de engenharia de materiais, química e engenharia mecânica, entre muitas outras, possibilitou o aparecimento de um instrumental cirúrgico mais preciso, menos traumático, bem como de próteses biocompatíveis, possibilitando cirurgias mais limpas, menos agressivas e com tempos de recuperação e resultados funcionais muito superiores aos obtidos há apenas algumas décadas.

Hoje, a digitalização dos registos clínicos está a permitir uma avaliação mais precisa de cada doente, uma comunicação mais fácil entre profissionais de saúde e a realização de estudos clínicos mais rigorosos e de maior dimensão.

Estes são apenas alguns exemplos dos grandes avanços que se têm vindo a registar. E se a medicina praticada hoje está a anos-luz da realizada no passado, é também verdade que estamos à beira de uma transição monumental para aquilo que será a medicina 4.0.

Considero-me um privilegiado por ter nascido, crescido e realizado a minha formação médica na terceira vaga de cuidados médicos. Aquilo que mais alento dá a um profissional de saúde é a diferença que pode fazer na vida dos seus doentes. Por outro lado, para quem trabalha com o intuito de melhorar os cuidados prestados, é bom saber que há um longo caminho a percorrer.

A terceira vaga da evolução dos cuidados médicos está a proporcionar uma série de armas diagnósticas e terapêuticas de comprovada eficácia, que garantem resultados num vasto leque de patologias. E, se é verdade que vejo o lado positivo da medicina hoje praticada, também é verdade que encontro lacunas.

A medicina atual é mais curativa do que preventiva. Os tratamentos médicos e cirúrgicos ainda são pouco individualizados. Os medicamentos de que dispomos são pouco seletivos para o alvo terapêutico e daí que a sua toma se acompanhe de efeitos adversos.

Os meios de imagem, hoje disponíveis, permitem diagnósticos mais precoces e precisos, no entanto, não são ainda completamente objetivos e a interpretação por vários médicos nem sempre é consensual.

O objetivo da medicina tem sido (maioritariamente) devolver a saúde a quem a perdeu e os avanços científicos atuais permitem melhorar e prolongar algumas funções orgânicas, para além do que seria considerado normal. É com esta ideia de possibilidades inexploradas que damos um passo em frente para a próxima vaga de cuidados médicos – a medicina 4.0.

Avanços da genética tornam hoje possível uma sequenciação completa de genoma a um preço acessível. Bases de dados com a informação genética de milhares de pessoas crescem a cada dia. Em breve será possível responder a algumas questões como: o que nos torna únicos? Quais os pontos fortes e fracos da nossa fisiologia? Como podemos de forma individualizada adaptar o regime alimentar e estilo de vida para maximizar a nossa saúde e longevidade? Como podemos adaptar as doses de medicamentos administrados a cada pessoa? E mais do que conhecer, será possível modificar informação genética de forma dirigida, por meio de terapia genética ou técnicas de gene editing.

Numa primeira fase, os tratamentos serão dirigidos para devolver pessoas doentes a estados considerados saudáveis. Mais tarde, as mesmas técnicas serão usadas para, subjetivamente, melhorar alguns traços genéticos considerados menos desejáveis colocando profundas questões éticas e morais.

Hoje, o aumento da quantidade e qualidade de registos médicos eletrónicos, avanços na área da computação e algoritmos de tratamento de informação e extração de padrões, permitem o aparecimento de sistemas computacionais que aprendem com a experiência.

Estes sistemas são designados, genericamente, como inteligência artificial, na medida em que melhoram iterativamente o seu desempenho, à medida que recebem mais informação e sem intervenção humana direta. Estão já disponíveis sistemas de rastreio automático de retinopatia diabética, diagnóstico de lesões de pele ou de análise de neuro imagem.

À medida que as bases de dados e poder de computação crescem e se tornam mais acessíveis, os referidos sistemas melhorarão sucessivamente o seu desempenho e influenciarão uma maior fração dos cuidados médicos prestados.

A robótica, impulsionada por avanços em eletrónica, miniaturização e computação dá passos largos na melhoria dos cuidados de saúde prestados. O robot cirúrgico mais utilizado na atualidade – da Vinci surgical system – começou por ser utilizado em urologia e estendeu a sua utilidade a áreas como cirurgia cardio-torácica e ginecologia.

Os dispositivos atualmente disponíveis são inteiramente controlados por um cirurgião e permitem executar movimentos precisos

(filtrando tremor) e realização de procedimentos menos invasivos por meio de incisões de menor dimensão. Permitem ainda a realização remota de intervenções cirúrgicas e o cirurgião pode estar num local diferente do robot que executa a cirurgia. O céu é o limite para estes sistemas. A melhoria e miniaturização dos componentes permitirão incisões menores e procedimentos menos invasivos.

Sensores mais precisos possibilitam intervenções menos traumáticas e, em última análise, com melhores resultados funcionais. Avanços na área da inteligência artificial permitirão, em última instância, a realização de procedimentos sem intervenção de humanos.

A miniaturização progressiva dos dispositivos médicos permitirá atingir escalas de dimensão, em que os mesmos terão apenas algumas dezenas a centenas de átomos de dimensão. Estamos a falar de nanotecnologia. Este será, seguramente, um dos avanços tecnológicos com mais impacto na medicina. Será possível introduzir pequenos robots em circulação e executar cirurgias sem qualquer incisão. Será possível influenciar individualmente o funcionamento de neurónios e estabelecer pontes de informação entre neurónios biológicos e máquinas, mas também substituir órgãos por versões artificiais e melhoradas dos mesmos.

Todas estas possibilidades, que afloram o horizonte, fazem-me ansiar pelo dia de amanhã e dão mais vigor e sentido a uma carreira na área médica. As possibilidades encerram em si responsabilidades. Se é um facto que vamos dispor de novos e extraordinários meios de diagnóstico e de tratamento, não é menos verdade que o sucessivo envelhecimento da população e gastos com cuidados médicos vão obrigar a um racionamento da prestação dos mesmos.

A humanidade conquistou o planeta e está à beira de adquirir as ferramentas para redefinir a sua própria biologia. Numa era de relativismo moral e ético é imperativo encontrar valores absolutos, princípios sãos e inabaláveis que possam guiar o nosso percurso para o tempo das infinitas opções.

José Nuno Galveia

(Médico, Oftalmologista)

Deixar um Comentário