A idade pediátrica não é necessariamente um fator protetor do mau colesterol e por isso é urgente quebrar a ideia de que a alteração dos valores só acontece em idades mais avançadas. As crianças e adolescentes também devem fazer o rastreio, pelo menos um por cada década de vida

O colesterol, tantas vezes visto como vilão, não deixa de ser uma molécula essencial para o correto funcionamento do organismo. Ele é um componente essencial das membranas que revestem as células; é o substrato para a síntese de diversas hormonas e da vitamina D; é indispensável no processo de mielinização dos neurónios, contribuindo para um correto desempenho do sistema nervoso; e participa também na produção de sais biliares que facilitam a absorção intestinal de gorduras. 

Sendo assim uma substância tão benéfica em diversas funções biológicas, a pergunta que se impõe é porque tem má fama e porque os médicos se preocupam tanto com os seus níveis? A sabedoria popular ensina-nos que “no meio é que está a virtude” e o colesterol não é exceção. Ainda que ele seja indispensável para a saúde humana, uma concentração elevada no sangue (hipercolesterolémia) está associada a um risco cardiovascular aumentado, decorrente de uma lenta acumulação desta gordura nas paredes das artérias, e em última instância obstrução do leito arterial. Essa obstrução limita a chegada de oxigénio aos tecidos, e consoante a sua localização, pode originar sérias complicações como enfarte agudo do miocárdio (“ataque cardíaco”), acidente vascular cerebral (AVC), lesões renais ou dos membros superiores/inferiores. 

Para evitar estes efeitos nefastos é preciso detetar precocemente a hipercolesterolémia e estabelecer medidas eficazes para redução dos valores de colesterol. Isso pode ser particularmente desafiante, dado que a hipercolesterolémia não causa muitas vezes sintomas até já ser tarde demais. Ao contrário do que acontece com os níveis de açúcar (glicose), cuja descida (hipoglicémia) ou subida (hiperglicémia) acentuada, é frequentemente acompanhada por clínica, a hipercolesterolémia pode passar silenciosa, mas com graves consequências a longo prazo.

A palavra de ordem é por isso RASTREAR. Uma análise ao sangue rapidamente dá o valor do colesterol total, do colesterol LDL (“mau”), do colesterol HDL (“bom”) e permite identificar quem tem risco cardiovascular acrescido. Isso é válido também em idade pediátrica. Urge quebrar a ideia de que alterações dos valores do colesterol só surgem em faixas etárias mais avançadas e identificar as crianças que beneficiariam de uma otimização dos seus estilos de vida, ou até mesmo de uma intervenção medicamentosa. 

A Direção Geral de Saúde, na norma nº 10 de 2013, apresentou o atual Programa Nacional de Saúde Infantil e Juvenil, consagrando um dos textos de apoio ao rastreio das dislipidémias (alteração dos lípidos – “gorduras”- no sangue) em crianças e adolescentes. O documento recomenda um rastreio precoce, entre os 2 e os 4 anos, para todas as crianças em risco, quer por terem uma história familiar de dislipidémia ou de doença cardiovascular em idade jovem, quer por serem portadoras – elas próprias – de determinados fatores de risco (ex. excesso de peso, obesidade, hipertensão arterial, diabetes mellitus, doenças renais, distúrbios hormonais ou metabólicos, toma de fármacos que potencialmente aumentam a colesterolémia). 

As restantes crianças, também devem ser avaliadas, ainda que possam ser mais tardiamente e aproveitando colheitas sanguíneas efetuadas por outros motivos, sempre que seja assegurada pelo menos uma medição de colesterol por cada década de vida.

Ainda assim, muitas das crianças portadoras de Hipercolesterolémia Familiar não são diagnosticadas, sendo menos de 2% dos casos identificados antes da idade adulta. A Hipercolesterolémia Familiar é uma doença hereditária, que passa de geração em geração, afetando cerca de 50% dos descendentes. Trata-se de uma das doenças genéticas mais frequentes, com uma incidência aproximada de 1 em cada 250 indivíduos. Apenas o diagnóstico e tratamento atempado, evita mortalidade precoce e assegura uma esperança e qualidade de vida semelhante à da população geral.

Ciente desta realidade, a Comissão Europeia, após uma análise cuidada da evidência científica existente, adotou em 2021, o rastreio universal da Hipercolesterolémia Familiar em idade pediátrica, como uma das “melhores práticas” a oferecer em termos de Saúde Pública. 

Cabe agora aos profissionais de saúde, aos decisores políticos e cidadãos de uma forma geral, trilhar o caminho para uma implementação eficaz de programas de rastreio, bem como redes de referenciação estruturadas para o acompanhamento destas crianças. 

Paula Martins

(Médica com a especialidade de Cardiologia Pediátrica)

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