Se o cérebro é insensível à dor, então porque nos dói a cabeça? Múltiplas razões, às vezes, apenas por causa de um jejum. A cefaleia é apenas um sintoma e, normalmente, a severidade da dor não tem uma relação com a gravidade do diagnóstico

É uma experiência quase universal e atinge a maioria das pessoas em alguma altura da vida. De facto, é bastante invulgar encontrar alguém que nunca tenha sofrido pelo menos uma cefaleia ocasional. Habitualmente, as cefaleias não são perigosas, mas podem originar preocupação quanto à sua origem, uma vez que podem constituir um alerta para doenças graves e temidas, como um tumor cerebral ou um AVC isquémico ou hemorrágico. É por isso que muitas pessoas procuram ajuda médica, correspondendo a cefaleia ou dor de cabeça a um dos sintomas que, com maior frequência, levam o doente à consulta de neurologia.

Desde tempos tão longínquos, como há 7 mil anos AC, que se encontram sinais de intervenções cirúrgicas ao crânio. As trepanações (remoção de um segmento de osso do crânio) foram amplamente efetuadas, possivelmente para libertar a cabeça de demónios e espíritos malignos. O homem antigo acreditava que estes espíritos eram a causa de cefaleias e de doenças como a epilepsia e a loucura.

Anos mais tarde, os egípcios amarravam um crocodilo de cerâmica com “ervas” na boca à cabeça do doente, usando uma tira de linho onde escreviam os nomes dos deuses que acreditavam poder curar as suas maleitas. O crocodilo e os deuses poderiam não ser eficazes, mas a tira de linho tinha potencial para aliviar a cefaleia, por compressão do escalpe e, possivelmente, colapsando os vasos distendidos responsáveis pela dor…

As cefaleias, apesar de serem um sintoma tão velho como o próprio homem, continuam a manter a atualidade, pela sua frequência e por afetarem predominantemente uma população ativa. Num estudo epidemiológico alargado e efetuado em Portugal, demonstrou-se que, ao longo da vida, 88.6% da população já teve cefaleias, sendo mais frequentes no sexo feminino (77.3%) do que no masculino (22.7%). Destas, as cefaleias recorrentes sem outra doença associada – enxaqueca, cefaleias de tensão – representavam a grande maioria das dores de cabeça.

A dor de cabeça é apenas um sintoma, a que podem corresponder as mais diversas doenças, quer como forma de apresentação destas patologias, quer como a manifestação mais valorizada por quem delas sofre. Contudo, normalmente, a severidade da dor não tem relação com a gravidade do diagnóstico.

Sendo o próprio cérebro insensível à dor, o que provoca a cefaleia? As membranas que envolvem o cérebro e os seus vasos sanguíneos de maior calibre são ricamente enervados por fibras nervosas, capazes de transmitirem a sensação de dor. Igualmente, outras estruturas da cabeça e da região cervical superior – olhos, ouvidos, pele, articulações e artérias – são extremamente sensíveis à dor. Estes factos explicam porque a perturbação de qualquer uma destas estruturas pode ser experienciada como uma cefaleia.

A dor é produzida através da irritação destas estruturas por mecanismos mecânicos, químicos ou inflamatórios que estimulam as células nervosas sensíveis à dor. Por sua vez, são estas células que enviam essa mensagem ao cérebro, que nem sempre consegue determinar o local exato onde se iniciou a dor…

Se a dor pode ter origem em diferentes estruturas, infere-se de imediato que não poderá ter uma causa única e assim o primeiro passo na avaliação do doente com cefaleias passa por recolher dados de história clínica, que permitam classificar a dor de cabeça quanto às características (pulsátil, em facada, em capacete, tipo moedouro…), ao perfil temporal (aguda, em crescendo, crónica), com ou sem sintomas e sinais acompanhantes, etc…

Com a Tabela de Classificação de Cefaleias, aceite pela Organização Mundial de Saúde, passamos todos a utilizar a mesma linguagem, permitindo definir uniformidade de critérios de diagnóstico explícitos para cada tipo de cefaleia, existindo 14 tipos principais e, cada um deles, pode ser dividido em subtipos, o que acaba por contemplar mais de uma centena de entidades:

1. Enxaqueca (migraine)

2. Cefaleias de tensão

3. Cefalalgias trigeminais autonómica

4. Outras cefaleias primárias

5. Cefaleia atribuída a trauma ou lesão da cabeça e/ou do pescoço

6. Cefaleia atribuída a doença vascular craniana ou cervical

7. Cefaleia atribuída a doença intracraniana não vascular

8. Cefaleia atribuída a uma substância ou privação

9. Cefaleia atribuída a infeção

10. Cefaleia atribuída a perturbação da homeostase

11. Cefaleia ou dor facial atribuída a doença do crânio, pescoço, olhos, ouvidos, nariz, seios perinasais, dentes, boca ou outras estruturas faciais ou cervicais

12. Cefaleia atribuída a doença psiquiátrica

13. Neuropatias dolorosas cranianas e outras dores faciais

14. Outras cefaleias

Basta olharmos para os itens principais desta classificação para percebermos quão vastas são as causas e as entidades nosológicas em que a cefaleia pode ser um sintoma principal, não esquecendo que cada tipo ainda comporta uma variedade considerável de subtipos…

Consideram-se as cefaleias primárias, sem lesão estrutural subjacente, e as cefaleias secundárias a outras patologias. As causas destas últimas são numerosas desde a ressaca, infeções, trauma e jejum, constituindo as dores de cabeça mais frequentes e cuja relação temporal é fácil de estabelecer, até à cefaleia aguda excruciante da hemorragia cerebral. Os tumores cerebrais são sempre um dos grandes receios, contudo, neste caso, a cefaleia carateriza-se por ser isolada e mesmo assim durante pouco tempo, surgindo como causa de dores de cabeça em apenas 8% dos casos.

Então, como devemos abordar um doente com cefaleias? Basicamente, efetuando uma história clínica cuidada, o exame neurológico e recorrendo a exames complementares de diagnóstico (exames laboratoriais, de imagem, neurofisiológicos e neuro psicológicos), de forma a excluir as formas secundárias que, apesar de menos frequentes, podem pôr em risco imediato a vida do doente. O estudo de um determinado doente pode incluir o recurso a diversas especialidades, sendo as cefaleias uma das situações que mais beneficiam com o recurso a equipas multidisciplinares – medicina interna, oftalmologia, psicologia e psiquiatria…

Existem ainda alguns sinais de alerta – as “red flags” – que permitem suspeitar de existência de cefaleia secundária, em concreto, a cefaleia súbita de intensidade severa, atingindo o máximo em poucos minutos, a cefaleia permanente sempre no mesmo local, ou a de agravamento progressivo, mas também a dor de cabeça de esforço ou posicional. A este leque de sinais, ainda se deve juntar a modificação das características de cefaleia preexistente, o aparecimento de cefaleia após os 50 anos, sintomas ou sinais neurológicos (alteração da consciência, edema papilar, défice focal…), rigidez da nuca, sinais sistémicos (perda de peso, febre), olho vermelho ou doença conhecida associada (cancro, défice imunitário ou de coagulação).

Depois de excluir as cefaleias secundárias, como atuar perante o doente com cefaleias primárias? Efetuar um diagnóstico precoce e correto, informar adequadamente o doente, corrigir fatores desencadeantes e/ou de agravamento e estabelecer terapêutica farmacológica preventiva e de “crise”.

As cefaleias constituem, sem dúvida, um dos problemas major de saúde com diversos graus de impacto individual e social. Contudo, o impacto de um episódio de cefaleia ou cefaleias recorrentes varia significativamente de pessoa para pessoa.

Individualmente, o impacto mede-se pelo grau de dor ou sofrimento e pelas consequências na saúde e bem-estar. Por outro lado, o impacto social avalia-se pelos “custos” implicados na investigação, nos tratamentos, nos dias de absentismo e na perda de produtividade.

Marlene Esperança Carvalho

(médica neurologista)

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