
Além dos mecanismos automáticos de “limpeza”, a nossa memória organiza-se e impõe- se pela emoção. Se não sentirmos não lembramos e tudo o que não interessa cai diretamente no “arquivo morto”
Recorda-se das férias em família e daquele verão em que foram pela primeira vez andar de gaivota? Recorda sim, mas o seu irmão, por mais que tente, não se consegue lembrar. Os dois estavam lá e tiveram a mesma experiência, mas os registos não são os mesmos. Possivelmente, este foi um acontecimento que foi muito divertido para si, mas para o seu irmão nem tanto. Isto mostra que a nossa memória não é uma gravação exata de tudo o que apreendemos. Só recordamos aquilo que de alguma maneira foi emocionalmente significativo.
A chamada memória seletiva existe e está ligada às emoções. A natureza e a intensidade emocionais atuam como facilitadores ou inibidores das recordações futuras. A memória seletiva pode ser muito útil se a exercitarmos em benefcio próprio, treinando-a para esquecer situações difceis e para recordar, com maior frequência, aquilo que nos recarrega energias. A memória faz estas coisas, porque esta é a faculdade cognitiva que nos permite adquirir, reter e evocar, quando necessário, informações obtidas em experiências vividas. Ela forma a base da nossa identidade e do nosso conhecimento e determina a nossa orientação temporal e espacial e as nossas aptidões intelectuais e mecânicas.
O mecanismo da memória ocorre em várias fases: a fase de aquisição que consiste na entrada de informação através dos sentidos; segue-se a fase de retenção, que consiste no seu armazenamento e que tem duração variável, podendo durar apenas segundos ou permanecer durante anos. Entre estas duas fases, é feita uma seleção dos eventos a registar, seleção essa que é determinada pela relevância dos eventos ou pela sua frequência. Mas, quando a retenção é definitiva, diz-se que ocorreu a consolidação. Temos ainda a última fase do mecanismo da memória, que é a evocação e que nos permite aceder a dados passados. É aquilo a que chamamos lembrança.
Embora não se saiba ao certo qual o limite da memória humana, sabe-se que ela não é capaz de registar todos os detalhes das nossas vivências e possuímos mecanismos automáticos de limpeza, que evitam uma sobrecarga de dados, eliminando algumas memórias para criar espaço para outras. Eventos desnecessários são banidos da memória num processo de esquecimento ativo, crucial para a manutenção de uma mente saudável. Falhas neste processo trazem desequilíbrios, tanto por esquecimento em excesso (no caso da amnésia, em que ocorre perda de memória) como por defeito, (a hipermnésia, caracterizada pelo excesso de armazenamento e confusão nas informações).
É necessário que haja uma seleção equilibrada entre os elementos a registar e os que devem ser eliminados, acreditando-se que a perda deste equilíbrio pode mesmo contribuir para condições mentais graves, como stress pós traumático, esquizofrenia e outras patologias do foro mental.
Entre uma e outra fase é a emoção que vai afetar o modo como cada um de nós armazena os acontecimentos e as emoções podem ser agradáveis ou desagradáveis e com diferentes níveis de intensidade. Consoante a natureza da emoção, cada registo é colocado num nível de memória mais ou menos acessível e, em jeito de sobrevivência, a nossa memória tende a lembrar o que é bom, afastando da mente os acontecimentos negativos.
Emoções fortes geradas por uma vivência real, sejam elas positivas ou negativas, condicionam o modo como interpretamos essa vivência e como a registamos no nosso “arquivo”. Em situações traumáticas extremas, por exemplo, pode ser difícil aceder futuramente aos acontecimentos, que são colocados em “arquivo morto”, num mecanismo de repressão e defesa, que impede o acesso fácil a recordações passíveis de criar desconforto ou ansiedade.
O velho conselho “Pensa numa coisa boa!” é uma ótima estratégia para ativar sensações positivas e a recordação de qualquer momento doloroso pode sempre ser atenuada se abrirmos a gaveta dos acontecimentos felizes. Afinal a memória seletiva dá mesmo jeito e é muito útil para o nosso bem estar.
Sara Couceiro
(Engenheira Biomédica)
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Muito interessante!
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