Pode existir um problema de ambição, porque eu não quero morar numa cidade inteligente. Eu quero morar onde as cidades sejam feitas para as pessoas. Desenhar outros projetos é distrairmo-nos

Já todos sabem que tenho um gosto especial pelo futuro da ciência. É lá que tenho feito a minha vida. E quando se diz que o número de pessoas com demência vai triplicar, parece que estamos a fazer futuro e ciência. Não estamos.

Há muito que a estatística escreveu esta história que ninguém lê. Em 1981 existiam 45,4 idosos por cada 100 jovens. Em 2001, existiam 100 jovens para 102 idosos, dez anos depois passou para 128 e, em 2013, para 136 idosos por cada 100 jovens. A juntar aos números, acrescenta-se que os próximos anos irão registar o duplo envelhecimento demográfico, fenómeno que acontece com a diminuição do número de jovens e de pessoas em idade ativa e o aumento do número da população idosa. Para 2060, estima-se que representem 36 a 43 % da população, com um índice de envelhecimento de 287 a 464 idosos por cada 100 jovens. O que faremos? Estamos preparados? Não. 

Não consigo prever o que vem aí. 

Projetam-se novas tecnologias e concebem-se cidades digitais, mas vão ser úteis a quem? Estarão pensadas para este fenómeno demográfico? Porque de nada adianta criar robots que substituem a companhia dos amigos ou da família. Conceber telefones inteligentes que nos avisam quando devemos tomar os comprimidos, painéis eletrónicos que nos alertam sobre a poupança do consumo energético… De nada adiantam se não foram concebidos para quem está a viver nessas cidades. 

E quais são as necessidades dessas pessoas? Primeiro que tudo precisarão de uma casa, caso contrário não poderão viver na cidade. Depois, essa casa pode ser um pouco mais inteligente e, em vez de umas chapas que resguardam do vento e chuva, deve dar conforto ambiental. Ou seja, não será preciso vestir 4 camisolas e dormir com 6 cobertores. 

Todos sabemos o que é preciso para construir essas casas e os engenheiros e arquitetos deste país até as sabem projetar e desenhar. Mas para quem? Só para pessoas inteligentes, claro, ou não fossem casas inteligentes… Os outros contentam-se em ter uma casa que não chova lá dentro, porque ou é isso ou é dormir na rua e ninguém gosta de ser embalado pelo cartão.

Enquanto esta diferença existir, nunca teremos cidades inteligentes. 

Será um problema de ambição? 

Eu não quero morar numa cidade inteligente. Quero morar onde as cidades sejam feitas para as pessoas, independentemente da idade mas, principalmente, para os que lá moram. Estamos preparados para ter 300 a 400 idosos por cada cem jovens? O que é preciso mudar? É agora que o devemos fazer e pensar. 

Desenhar outros projetos é distrairmo-nos e não valorizar o que a evolução escreve há muito.

António Travassos
(Médico Oftalmologista)

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