Basta esta frase para perceber porque Frei Bento Domingues é uma voz incómoda, de ontem e de hoje. Aprendeu a ver o mundo às avessas aos 13 anos de idade. Fez voto de pobreza na Ordem dos Dominicanos e prega há mais de 60 anos. Não se cansa de acreditar.

 

Escolheu a Ordem dos Dominicanos, uma ordem de pregadores. Essa missão construiu o que é o Frei Bento Domingues?

Sem dúvida. Descobri essa vida com um dominicano que foi pregar à minha aldeia. Eu só tinha 13 anos e, naquele tempo, existia uma religião de medo, de ameaça, com um Deus ameaçador e um inferno à espreita. O Frei Adriano veio falar-nos que o mundo era às avessas. Falou-nos da alegria de Deus, da positividade do mundo, o que podíamos fazer uns pelos outros e da nossa intervenção na história do dia-a-dia. Quis logo ser como ele. O Frei Adriano era o pré-anúncio desta gente que vê o mundo com outros olhos, a partir dos excluídos e dos maltratados. Foi um tempo que desembocou no Papa João XXIII e, hoje, no Papa Francisco.

 

O Papa Francisco vai conseguir mudar o mundo?

Não. Não pode mudar o mundo porque, para o mudar, seria preciso que as pessoas o quisessem: o mundo é feito de muitos povos, muitas culturas, muitas religiões com histórias muito diversas. Ninguém pode substituir a nossa liberdade, nem Deus, nem ninguém. O problema que há é o trabalho de conversão das pessoas, se as pessoas concordarem em viver e fazer o mundo de outra maneira. O Papa Francisco está a fazer um trabalho enorme nessa área de muitos modos, mas só pode deixar a semente. Não há decreto que revolva o fundo da vida. Na Igreja, além de muitos outros aspetos, o que ele está a fazer de fundamental é o combate ao carreirismo, fonte de muitas outras perversões. A reforma da Cúria Romana não é só a reforma, é também a mudança de mentalidade, mesmo no clero jovem que é tentado a conceber a sua vida sob o modelo de uma carreira.

 

A Igreja só precisa de mudar o carreirismo, não precisa de mudar mais nada?

Na Igreja, acho que isso é essencial. Ao mudar o carreirismo, muda a mentalidade das pessoas e começa-se a ver o mundo a partir dos que precisam. E, então, a carreira é outra: fazer da vida um serviço. Há duas coisas que peço ao Papa Francisco: não faça nada por decreto; um decreto é facilmente suprimido por outro decreto. E outra: ajude a moldar outra cultura, outra mentalidade, outra arte de encarar o mundo, de viver na Igreja, valorizando o que o mundanismo desclassifica. O Papa está a querer valorizar homens e mulheres, jovens e adultos, casados e solteiros, pessoas que sejam capazes de dar a vida pelos outros: essa é “pancada” do Evangelho.

 

Acredita mesmo que, um dia, as mulheres serão padres e/ou bispos?

Claro! Para mim, isso é muito evidente. Não poderei dizer nem o dia nem a hora.

 

O que falta?

Falta vontade. As mulheres estão no coração do cristianismo. Foram elas que, no começo, garantiram o seu êxito. O cristianismo nascente é fruto das mulheres. É preciso não esquecer esse facto. É evidente que, depois do empenhamento das mulheres e sobretudo de Maria Madalena, os homens empalmaram o jogo e nunca mais o largaram. Mais uma vez, quem tinha o poder – as mulheres no tempo de Jesus não tinham nenhum poder – facilmente o recuperou. Mudar esta situação leva o seu tempo, mas já se está com o pé no caminho.

 

Se as mulheres forem aceites nesse papel, mais facilmente se conseguirá mudar a mentalidade?

Tenho a certeza e há muitas mulheres interessadas em contribuir para essa mudança. O olhar feminino sobre a realidade é completamente diferente do masculino. Se as mulheres não estão presentes, falha parte do olhar cristão e humano sobre a realidade. A grande revolução que pode ser feita no mundo é precisamente essa: despertar mulheres e homens para fazer da vida um serviço de transformação da situação atual, contribuir para mudar o mundo. Há um instinto em nós, estudado por René Girard, chamado “imitação do desejo”. Este fenómeno pode ser observado num jardim-de-infância: uma criança está a brincar e a outra procura tirar-lhe o brinquedo; é uma forma não só de tirar o objeto que o outro deseja, mas de lhe comer o próprio desejo. Temos os nossos desejos distorcidos. A educação devia servir para ir mudando os desejos de posse, de dominação, e ajudar a descobrir a alegria do desejo de servir, de cooperar. No mundo de competição em que nos encontramos, julga-se que essa é uma educação de palermas para formar palermas.

 

Deus é sempre justo?

Deus não falou comigo acerca disso. Há muitas imagens de Deus e muitas delas absurdas, violentas. Os profetas zelaram pelas imagens de um Deus de justiça e compaixão. Não é Deus que provoca a injustiça, mas é Ele que desperta a compaixão pelos que não têm nem vez nem voz. Seja como for, teremos sempre diante de nós esta questão: há muita realidade no mundo que tem sentido; há muita deformação no mundo, realidades que não deviam existir assim, muita injustiça, muito sofrimento inocente, muito mal. A interrogação é inevitável: se há bem, donde é que ele vem; se há mal, quem é o responsável? O ser humano é limitado, não é a regra do seu agir e pode seguir o caminho do bem e o caminho em que estraga a sua vida e a vida aos outros. A palavra Deus evoca a bondade e a fonte de bondade. De Deus só pode vir o bem. Do ser humano, limitado e obrigado a escolher, podem surgir escolhas erradas. Daí: quando digo Deus, digo que a vida tem sentido; quando rezo, digo que Deus é o sentido da minha vida; quando peço perdão, digo que falhei. Ao dizer isto, não estou a resolver nenhum problema. Digo, porém, que Deus não pode ser senão justo. Mas custa ao ser humano aguentar com a responsabilidade do mundo que todos os dias estraga.

 

Pode um homem mudar outro homem?

Contra a sua vontade, não. Eu fui sempre transformado pelas pessoas boas e fantásticas que conheci e que me marcaram pelo seu exemplo. Aristóteles reuniu sempre ética e política: devíamos procurar, como seres humanos, realizar uma vida boa – não é mesmo que uma “boa vida” – para nós e para os outros em instituições justas. A política, quando unida à ética, procura criar condições de vida verdadeira para todos. Tomás de Aquino dizia que a maior das virtudes humanas era a política, a busca da justiça para todos. Encontrar pessoas que tenham essa “pancada”, que sejam boas, justas, que queiram tornar o mundo mais agradável para os outros, são pessoas que valem a pena porque fazem que a vida de todos e cada um valha a pena. O seu exemplo é uma força de mudança.

 

Teve sempre um discurso pouco comum. Foi persona non grata para o Estado Novo e para a Igreja dos anos 60….

Ajudei algumas organizações clandestinas. Cresci numa aldeia que só teve luz elétrica e uma estrada em 1980 e, na escola primária, tive de fazer mais de 50 redações sobre as estradas de Salazar. Na minha terra a vida era extramente dura para as pessoas e só comecei a descobrir o país e toda a situação em que vivíamos quando entrei para os dominicanos. Era intolerável assistir a uma ditadura, com várias frentes de guerra, e não fazer nada. O meu problema foi esse. Eu achava que não fazer nada seria crime, porque não era só o país em geral que estava em causa, eram as pessoas, havia relatos e rostos do sofrimento e da fome.

 

E o 25 de Abril, como o sentiu?

Estava em Roma, mas no 1.º de Maio já tinha voltado a Portugal. Fui para a rua também, mas vi tantos “revolucionários” na rua que, ao fim de meia hora, já estava em casa a pensar que havia ali batota porque antes, para esconder revolucionários, era muito difícil encontrar pessoas dispostas a arriscar. O que interessava e interessa é que os partidos e os movimentos existam em função das pessoas e não as pessoas em função de estratégias políticas que tornam os ricos cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres, ou melhor, sem defesa para os dias maus. O presente desconsola-me. Quando um primeiro-ministro tem a seguinte mensagem de salvação: “quem não está bem, não seja lamechas, imigre”, está tudo dito. Quando se diz que os portugueses “andaram a gastar acima das suas posses”… isto torna-me inconformado, revolta-me, pois não foram os pobres nem os remediados que levaram o país à falência. Que os burocratas venham dizer coisas dessas e aplicar receitas de mais austeridade a quem nunca viveu à larga, a quem a austeridade foi a regra de vida, dá pena, dá pena ouvir tanta imbecilidade.

 

Como é que um frade olha para os múltiplos casos de corrupção que vão sendo conhecidos?

Chegámos a um ponto esquisito. De repente, já não são precisos tribunais, ministério da Justiça ou faculdades de Direito. Agora os julgamentos fazem-se na televisão. Acho que há batota. Corre-se o risco de voltar àquilo que se quis evitar com o 25 de Abril: prender para investigar em vez de investigar para prender. Depois, existe o segredo de justiça para ser violado pelos que se dizem promotores da justiça. Mais ainda, já existem jornais e programas de televisão que fazem sondagens para avaliar a culpabilidade dos presos. Há uma regra: enquanto um cidadão não for condenado, deve ser considerado inocente. Não é o preso que está obrigado a confessar-se culpado. A prova pertence a quem acusa. De outra forma, confundimos um tribunal com um confessionário. Desburocratizem os tribunais, a justiça, façam as coisas mais ágeis e transparentes, mas não suprimam o que é uma aquisição grega, romana, latina e cristã, que é o Estado de Direito. Se suprimirem isso, entramos naquilo que tanto criticamos nas ditaduras. Com o salazarismo também era assim: as pessoas eram suspeitas, iam para a cadeia e depois é que investigavam. Por outro lado, um Estado burocrata não olha para as pessoas, enche a boca de combate à corrupção e ela cresce. Onde está o erro? Menos conversa sobre a corrupção e mais justiça económica e social para a combater de forma radical.

 

A democracia não serve para dar poder a todos?

Por definição devia ser isso. Para o tornar possível – a democracia direta, nos grandes conjuntos, é impossível – a sociedade tem de ser organizada, tem de haver leis e formas justas de representatividade. Antes de mais, importa perguntar: quem fica de fora e porquê? Sem acesso aos bens concretos de uma sociedade concreta, de forma justa, não há democracia. Quem são os que têm fome, os que não têm hospital, que não têm acesso à farmácia? Quem são os que não têm acesso ao salário? A democracia deve ser julgada, não de uma forma abstrata, mas de modo concreto. Há uma lei do evangelho muito bonita: pelos frutos conhecereis a árvore. Levanta a questão: perante uma organização social, económica e política, quem fica de fora? Os que ficam de fora é que são os juízes acerca dos frutos dessa organização e das suas práticas. O melhor nem sempre é cortar a árvore. Também se conhecem boas enxertias.

 

Estão a cortar a árvore?

Estão a fazer uma coisa ainda mais grave, estão a desvalorizar a política. “A política é uma porcaria”, “os políticos são todos iguais”, “são todos corruptos”… Esta é a chamada conversa do taxista. O problema, para mim, é muito grave, porque a política, o cuidar do bem de todos, é essencial e há pessoas que têm jeito para isso e têm excecionais capacidades de liderança, regenerando a política e obrigando os políticos a fazer o teste das suas capacidades. Não é só nas eleições e nas campanhas que é importante o contacto direto, entre as pessoas, entre os eleitores e os eleitos. Não sei como seria possível extirpar, do fundo do coração das pessoas, a tentação de “aldrabar” e fazer vencer a vontade de servir. O que deveria definir um líder político seria o gosto e a capacidade de servir o bem comum, isto é, aquilo que torna justa e agradável a vida em sociedade.

 

Acredita que é possível nascerem políticos com essa capacidade?

Tem de ser. O mundo não acaba amanhã. O grande trabalho é este, é a conversão da política e das lideranças políticas. Daí, que o nascimento de novas gerações de vocações políticas seja fundamental. Se isto não acontecer, andamos a trabalhar em vão. Hoje e sempre, a raiz de todos os disfuncionamentos resulta, em todos os sectores da vida, a começar pela família e pela escola, das injustas desigualdades sociais e da vontade de as manter.

 

Enquanto pessoa e cidadão, o que o preocupa hoje?

Preocupam-me muitas coisas, mas sobretudo o estado atual da Europa e a perda do que se tinha sonhado para a União Europeia. A Europa nasceu precisamente para não se gastar em guerras, mas para investir na criatividade, segundo a originalidade de cada cultura dos Estados membros. Todos juntos, seríamos mais capazes e mais fortes ao serviço da humanidade. Saiu o tiro pela culatra. Os mais fortes ainda são os EUA e, agora, quer ser a China. Dá-me vontade de rir quando se fala do milagre chinês e que a salvação da Europa é a China! Nem os EUA nem a China são fortes no respeito e na promoção dos direitos humanos. Se é essa a fortaleza que se deseja para a Europa, desejamos que a Europa perca a sua alma que estava a emergir depois da loucura de duas guerras mundiais. A Europa foi uma terra que fez muitas asneiras, mas tinha ressuscitado para projetos que a podiam regenerar. Agora, não sabe o que há-de fazer da emigração que recebe, pois continua a participar em todos os comércios ilícitos: de armas, drogas e seres humanos, e faz do Mediterrâneo um cemitério.

 

Sente que é uma voz incómoda?

Sempre me disseram isso, mas eu não sei porquê. É verdade que não posso pactuar com coisas que vejo que podem ser de outra maneira. Temos de abrir janelas para o futuro, é preciso criar condições. O contributo, que cada pessoa e que cada geração pode dar, é importante.

 

Não pode passar sem dizer o que pensa, é um espírito livre?

Não sei se sou tão livre quanto isso, gostava de ser muito mais livre. Quanto ao problema da liberdade, resisto bem às pressões. Mas o espírito livre é sobretudo o espírito criativo. Neste sentido, sou bem pouco livre. Sempre tive curiosidade em saber o que se passa no cérebro de uma pessoa que cria música. O músico cria sem referências, do nada, cria só com notas de música. O pintor ainda se inspira no que vê, nas cores… mas na música não, é a arte das artes.

 

O que o irrita?

Irrita-me muito o desprezo. Irritava-me que as pessoas fossem obrigadas a andarem de porta-em-porta, de terra em terra, à procura de subsistência. Isso era uma humilhação. Confesso, no entanto, que nos anos 40, do século passado, não eram menosprezadas. Instintivamente, sabia-se que precisavam de esmola, mas sobretudo de dignidade. Irritava-me ver aquele mundo de pessoas sem oportunidade para desenvolver as suas capacidades. Os que cantavam ou tocavam às portas, pedindo uma esmola, nunca poderiam vir a ser um Mozart. Hoje irrita-me o desprezo com que se olha para os jovens e idosos deste país: o Papa Francisco cunhou a expressão dos descartáveis, dos sobrantes.

 

Os pobres são os únicos que ainda têm esperança?

Se tudo for instrumentalizado em termos de dinheiro, os pobres, os doentes, os velhos só têm a esperança da morte. Mas podem ser a fonte de regeneração social se tocarem no egoísmo institucionalizado das nossas sociedades e surgirem vozes, atitudes e movimentos que digam: este mundo assim é impossível. Onde aumenta o perigo, pode crescer a salvação, se vozes como o do Papa Francisco nos convocarem para alterar este mundo. São, então, os pobres que nos acordam.

 

O que o faz feliz?

Tudo, mas principalmente o sorriso de uma criança. A criança tem gosto de rir, não está a rir dos outros, está contente. É muito bonito. Mas também o sorriso de um velhote, às vezes também se encontra, são pessoas extraordinárias. Os portugueses são pessoas especiais. Nunca encontrei um português que diga: estou ótimo ou péssimo. Diz sempre: “mais ou menos”, “vai-se andando”, “podia estar pior”. Agustina Bessa Luís descreve muito bem os portugueses, quando diz que somos um povo repentino. O planear, o aguentar é que nos custa. De repente, somos capazes do melhor e do pior. O que me faz feliz é poder rir de muita coisa e também poder indignar-me. Ainda não estou morto. Saber que somos amados, que estamos no coração de Deus, na vida, na doença, na morte ajuda.

 

Nunca se cansa de pregar?

Fisicamente sim! O principal é encontrar dentro de mim, vontade permanente de me preparar para esse trabalho, que não é propaganda, é escuta e comunicação. A pregação, como comunicação, exige deixar-se envolver pelo espírito e pelas interrogações das pessoas. A pregação numa celebração da Eucaristia deve ser uma boa conversa de família: somos todos irmãos, filhos de Deus. Mas, se me colocar em situação de comunicação, então, trata-se de um problema espiritual e não só de ciência bíblica, indispensável, e de “eloquência”. Não é fazer sermões, porque isso é chatear as pessoas. Na “graça da pregação” – expressão nascente da Ordem dos Pregadores –, a comunicação tem de ser engraçada e tenho de estar em consonância com o que as pessoas precisam e com o Evangelho. Depois, estou com pessoas muito diferentes, uns estão doentes, outros perderam o emprego, outros estão muito felizes, as pessoas estão sempre em situações muito diversas. Na celebração temos de encontrar um caminho para Deus e de uns para os outros. Não ter isto em conta é tornar-se um mau funcionário.

 

Tem saudades do Basílio de Jesus?

Creio que ele andou sempre comigo, por causa dos documentos. Como cidadão ainda o sou, assino Basílio de Jesus, mas sou Frei Bento Domingues, O.P..

 

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