Na sociedade atual há uma grande estimulação dos desejos e ao mesmo tempo um empobrecimento da interajuda e solidariedade social. A psiquiatria vai sendo chamada, cada vez mais, para intervenções preventivas e promoção do debate dos problemas da organização da sociedade, da natureza e dinâmica dos postulados sociais e até filosóficos da vida, do ambiente e da proteção da dignidade humana dos que sofrem
Quando se fala de Saúde Mental em Portugal não é fácil esquecer as dezenas de anos de uma realidade plasmada por vivências de estigmatização e descriminação, com a amputação, aos doentes, de muitos dos seus direitos humanos. Hoje todos os seres humanos são livres e, embora vivam com dispositivos biológicos, as vivências são mediadas por ligações morais, éticas e emocionais ao meio e aos outros.
A medicina foi deixando que o homem fosse visto nas dimensões mente/corpo e organizou a clínica num dualismo em que a psiquiatria foi o parente pobre e mesmo proscrita dos areópagos da investigação, do diagnóstico, da inovação tecnológica. A doença foi sendo cada vez mais avaliada como valores numéricos aumentados ou diminuídos, segundo padrões vistos como normais, numa secundarização da relação médico-doente, privilegiando os dados que a evolução tecnológica e científica comodamente disponibiliza.
Sabemos das novas perspetivas que a ciência abriu no debelar do sofrimento, mas este horizonte não deve ofuscar a necessidade de outros saberes, ligados à natureza e às ciências humanas. Na realidade estes avanços científicos que foram acontecendo também nas neurociências não se podem dissociar, quando inseridos na prática clínica, da pessoa examinada e das dimensões sociais, culturais e psicológicas que acompanham todos os que se sentem doentes.
Mais informação das neurociências
Nas últimas décadas a psiquiatria foi sendo chamada a ocupar o seu lugar como um ramo importante da moderna medicina e as neurociências foram-nos dando cada vez mais informações sobre as capacidades e funções do cérebro, sendo que é nesta estrutura que se desenvolvem muitas das nossas capacidades nas várias áreas do saber e até das emoções.
Assim, é importante que se diga que, quando falamos do tratamento e da ressocialização dos doentes psiquiátricos, temos que dispor de uma avaliação e tratamento médico que ajude a controlar as alterações na estrutura e funcionamento cerebral. Mas não se pode igualmente negligenciar os aspetos das motivações, crenças, cultura, afetos e vivências.
A psiquiatria atual tem também que olhar para a qualidade de vida das pessoas, mesmo os que não estão doentes, de ter intervenções preventivas, de debater os problemas da organização da sociedade, da natureza e dinâmica dos postulados sociais e até filosóficos da vida, do ambiente e da proteção da dignidade humana dos que sofrem.
É igualmente importante fomentar ações na comunidade, de modo a valorizar a autonomia pessoal, privilegiando os aspetos reabilitativos dos pacientes, mesmo naqueles em que há notórios sinais de deterioração, numa perspetiva de dignificação do homem por imperativo ético e por um novo estilo de vida que enfatize a humanização dos espaços públicos. É com certeza uma visão moderna, este olhar para os direitos humanos, com acentuação da dimensão social do homem, da preocupação ecológica, da qualidade de vida.
Complexidade da vida moderna
Na atividade clínica psiquiátrica todos estes aspetos só poderão ser levados em conta numa praxis em que a relação médico-doente assuma uma importância fulcral, possibilitando uma narrativa da vida, uma expressão das emoções, um conhecimento das relações com o meio e com os outros cidadãos, a de vivência subjetiva e a significância dada à complexidade da vida moderna.
Numa sociedade global e m que o bem-estar é a meta que todos desejamos, a realidade vai-nos mostrando uma prevalência maior de perturbações da saúde mental, que envolve maior consumo de substâncias ilícitas, de violência, stress nas várias relações, competitividade no trabalho e frustração dos objetivos falhados. Ser reconhecido, ser amado, desejar e ambicionar são estruturantes na vida pessoal de cada um. Ao longo da existência são estes os ingredientes que nos vinculam aos outros.
Esta realidade deve equilibrar-se de modo a não causar prejuízo ao eu e ao outro, pelo que se deve desejar sem exagero, sem a angústia do tudo ou nada. Mas na sociedade atual há uma grande estimulação dos desejos e ao mesmo tempo um empobrecimento da interajuda e solidariedade social, facilitando a falência dos mecanismos homeostáticos. Vamos com certeza assistir no nosso Sistema de Saúde à recente valorização dos parâmetros socioculturais e psicológicos do doente e também a um maior investimento na recuperação profissional, reanimação dos laços familiares e melhoria da autoestima e das motivações.
É notório que ultimamente se está a inverter a forma de lidar com a saúde mental, privilegiando o trabalho na comunidade, acabando com os hospitais psiquiátricos clássicos e ultrapassando a visão acentuadamente biologista do modelo anterior. Também os responsáveis pelo país alteraram as dotações financeiras para esta área do SNS, dando um sinal potencializador das mudanças, com um aumento das verbas para o sector.
Finalmente, não podemos deixar de sublinhar o sofrimento destes doentes, a dureza das suas vidas, as dificuldades do diagnóstico e da terapêutica e a necessidade de um trabalho competente dos vários profissionais envolvidos.
Só assim podemos ajudar quem sofre a combater a doença e – no final – recuperar-se.
António Reis Marques
(Médico Psiquiatra; OM n.º 13137)

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