Não tinha treino específico nessa área, mas foi capaz. Fez tudo o que se poderia fazer na transplantação de órgãos abdominais. Empenhou-se na cirurgia de alto risco e dedicou-se a dar vida a quem a tinha por um fio. Alexandre Linhares Furtado, o Cirurgião, é um caso único e irrepetível. Hoje, não seria autorizado. Por sorte, esta história não é de hoje, começou há mais de 50 anos
No mesmo dia em que o homem pisou a Lua, um Cirurgião de Coimbra executou o primeiro transplante de rim em Portugal. «Esse órgão foi, de longe, o mais fácil de fazer», seguiram-se outros: fígado, pâncreas e intestinos. Fez tudo o que se poderia fazer na transplantação de órgãos abdominais e algumas das técnicas operatórias que executou nunca mais se praticaram no país.
Hoje, esta história não poderia ser repetida. A conjuntura científica e as práticas internacionais não o permitiriam. «Atualmente, os médicos iniciam as suas especializações, nomeadamente as cirúrgicas, demasiado precocemente, sem uma preparação geral que lhes conceda reais potencialidades para o exercício autónomo e responsável, fora das áreas restritas que abraçaram. Compreensivelmente, a prática de outras competências, mesmo por um cirurgião com reconhecida e ampla experiência nos mais diversos aspetos da Cirurgia Geral, só será admitida após curriculum formativo regulamentar, em meio e em tempo adequados. Beneficiei de uma situação muito particular dos tempos e, em consequência disso, da preparação que pude desenvolver (em grande parte com muito autodidatismo) nos mais variados campos da Cirurgia Geral».
O caminho na transplantação do rim foi assim trilhado. Correu bem e seguiram-se outros. Estaria destinado a tratar do fígado; aliás, esta era uma dedicação antiga. Linhares Furtado elaborou a tese de licenciatura sobre o fígado, construiu competência precoce para a cirurgia e fez o seu trabalho de doutoramento também sobre este órgão. «O fígado é realmente um órgão fascinante e muitíssimo complexo. É sede de processos químicos profundos e essenciais à vida. É, verdadeiramente, a maior fábrica química e metabólica do organismo! E também se mostra imune a algumas alterações anátomo-patológicas, desencadeadas por ele próprio noutros órgãos, como acontece, por exemplo, na paramiloidose. Exibe ainda uma capacidade regenerativa notável e que muito ajuda nos transplantes»!
Foi o fígado que o inspirou a aplicar na sua bancada de trabalho as técnicas que já se faziam lá fora, transportando essa ciência e tecnologia para o nosso país. Não se limitou a fazer o que os outros já faziam. Acrescentou a inovação em várias técnicas cirúrgicas. Foi isso que fez quando realizou o primeiro transplante hepático sequencial (ou em “dominó”), recorrendo a fígado de doentes com paramiloidose ou quando, numa mesma sessão operatória, transplantou três doentes dispondo, à partida, de um único enxerto de cadáver. Complicado? Não. Como todos os órgãos para transplante são um “bem escasso”, Linhares Furtado idealizou uma forma de aumentar o número de enxertos.
Na paramiloidose, o fígado produz uma proteína anormal que lesa outros órgãos e que causa a doença que, normalmente, só tem expressão clínica na segunda década da vida. Na maioria dos transplantes hepáticos em doentes com paramiloidose, procede-se à remoção do fígado doente, antes de implantar o enxerto que o substituirá e o órgão retirado é apenas objeto de estudo laboratorial.
Foi aqui que o Cirurgião de Coimbra inovou. Primeiro, quando concebeu a ideia de fazer um transplante sequencial, recorrendo ao uso do fígado removido ao doente paramiloidótico, enxertando-o em doentes de muito mau prognóstico e que morreriam em lista de espera (sem transplante) e, em segundo, quando estabeleceu os esquemas técnicos que garantiriam a segurança máxima para o dador e para o recetor. Este aproveitamento dos fígados dos paramiloidóticos rapidamente se expandiu pelos vários países onde existia a doença e chegou a representar um aumento de 30% na disponibilidade total de enxertos hepáticos para outros doentes.
As características anatómicas do fígado permitem tudo isso. Ou seja, que se divida um enxerto em dois (ou que se retire, mesmo de um dador vivo, apenas uma parte do seu fígado, para transplante). Associando essa possibilidade à do transplante sequencial, realizou, também pela primeira vez a nível mundial, um triplo transplante – três doentes transplantados – a partir de um só órgão de cadáver não paramiloidótico. Isto é, Dividiu um enxerto de cadáver em dois; uma parte serviu de transplante numa criança e a outra num doente com paramiloidose: por sua vez, o fígado retirado a este doente foi implantado noutro doente não paramiloidótico. «Foi a primeira vez que se fez isto no mundo. Apesar dos excelentes resultados, não nos foi possível recorrer a esta transplantação tripla senão três vezes, face à pequena dimensão das equipas para o tremendo esforço que se lhes exigia».
«E tudo isto é esquecido… eu sou particularmente mencionado por ter feito o primeiro transplante renal no país e esse foi sempre o mais fácil. Essa nem é a parte mais importante da minha carreira como médico e cirurgião. Há outras, muito mais importantes. Hoje, a senhora F., transplantada de urgência (em coma) há 24 anos, mantém-se em plena atividade e há muitos anos que nem precisa de tomar a terapêutica contra a rejeição do fígado…».
O pioneirismo no país voltou a ser escrito quando realizou a primeira colheita parcial de fígado num dador vivo (”um procedimento de exigência ímpar no planeamento e na execução”) e o consequente transplante. Neste caso, a colheita feita pelo filho (Emanuel Furtado) e o transplante pelo pai, Linhares Furtado. Também o início do transplante pancreático em Portugal teve lugar nos HUC e com a mesma equipa. O mais antigo transplantado de pâncreas em Portugal já conta vinte anos livre da diabetes e da insulina.
O mesmo voltou a acontecer quando realizou a mais rara e também a mais contingente de todas as transplantações de órgãos vitais e que é executada em muito poucos centros – o transplante intestinal. Às mãos do Cirurgião, este doente recebeu um transplante simultâneo de intestino e fígado. Especificamente para este caso, Linhares Furtado criou uma técnica inovadora que iria colmatar as dificuldades vividas com a imunossupressão que, neste campo, é particularmente suscetível a violentas rejeições. O Cirurgião de Coimbra liderou a equipa que realizou os primeiros transplantes de intestino efetuados na Península Ibérica e os únicos em Portugal, até hoje. «Não existia dedicação exclusiva, mas «tínhamos disponibilidade permanente», acrescenta.
Foi uma bolsa de estudos e a cidade de Coimbra que acabaram por mudar o rumo desta história, que parecia destinada a ser vivida na América, à semelhança do que acontecia com grande parte dos seus conterrâneos açorianos. «A verdade é que, uma vez que a Universidade e o seu Hospital me pediram para integrá-los, incitando-me mesmo a fazer aqui o doutoramento, senti que também tinha obrigações especiais e que uma delas era fazer avançar a medicina do país. Foi isso que fiz, quando comecei a transplantação renal e foi também com esse pensamento que aceitei iniciar a transplantação do fígado, quando mo solicitaram e ainda quando iniciei a pancreática e a intestinal».
Não tinha experiência em transplantação hepática no Homem, mas já se tinha dedicado à cirurgia de risco. Selecionou a equipa nas várias áreas da Medicina e seria com estes elementos que iria elevar o nome da Cirurgia e de Coimbra até à sua jubilação. Primeiro, em 1969, com a transplantação do rim, depois com uma equipa mais vasta, criada em 1991, para dar início ao transplante de fígado. Não existia experiência, começaram com o treino experimental em animais (porco), obtendo sobrevivência e segurança cirúrgica em pouco tempo. Depois, para acréscimo da confiança, deteção de eventuais pormenores em falta e máxima “afinação”, alguns elementos da equipa estiveram umas semanas no mais famoso centro de transplantação do mundo (em Pittsburg), onde o próprio Linhares Furtado também esteve, como observador, durante uma semana.
O resto já quase todos conhecem. A história fez-se e, se hoje Coimbra reclama o título de Capital da Saúde, não pode alhear-se do percurso que aqui foi feito na transplantação de órgãos vitais.
Pioneiro? «Não, autodidata» corrige. Próximo de Deus? «Nem pensar». «É a devoção a uma profissão que nós, médicos, consideramos particularmente nobre. Sempre senti grande felicidade por ajudar a natureza a salvar pessoas, simplesmente dando-lhes mais e melhor vida. Esse sentimento mantinha-se, apesar dos sacrifícios, por vezes brutais, que fazíamos. Admito que outras profissões proporcionem esta mesma sensação, mas a intensidade não me parece a mesma, porque não têm de conviver, em simultâneo, com a amargura de muitos sofrimentos e até da morte. Ver falecer alguns doentes leva-nos, por vezes, a pensar se não se poderia ter feito mais ou melhor… É uma dúvida que fica e atormenta».
Também há o inverso, como o encontro solicitado por um doente transplantado que apenas «me quis agradecer os 13 anos de vida que lhe havíamos dado – “Vivi lindamente” – confessou-me». A morte foi um destino evitado.
«Estou feliz e grato por todo este meu percurso. O futuro da Transplantologia está garantido, seja com a transplantação como atividade cirúrgica com órgãos humanos, seja com a criação de órgãos biologicamente compatíveis com os organismos da nossa espécie… mas isto ainda irá demorar mais algum tempo!»
Para Linhares Furtado, a transplantação e a cirurgia ficaram arrumadas nessa prateleira, de dever e obrigação cumprida. «Um cirurgião também deve saber parar. É um dever. Eu tive de parar por questões de saúde. Se fosse só pelo dever… Talvez tivesse ficado mais algum tempo. Não pude, a falta de saúde obrigou-me a decidir. Mas, é muito difícil saber quando cessar; temos de escutar as pessoas certas. Muitas vezes, por caridade ou por gentileza, as pessoas não são sinceras. «Veja o exemplo: ainda hoje alguns dizem-me que estou esplêndido…, mas só o dizem por simpatia! Estou cheio de dores nas costas e…tenho menos dez centímetros de altura! Não sinto mágoa por ter abandonado a cirurgia; tenho saudades, claro».
Acredita no destino? «Acredito na sorte e eu tive alguma. Até no feitio com que se nasce é preciso ter sorte e, de um modo geral, sou um otimista». O resto, a profissão terá moldado o que hoje é Linhares Furtado, o Cirurgião. «Até a escrever procuro o rigor e a eficácia. Foi a parte científica da minha vida que me impôs isso, tal como a objetividade. A profissão moldou-me, sim…»
No final, quando se pergunta qual o dia mais importante, a resposta acaba por ser igual à de muitos outros mortais. «Não tive consciência do dia em que nasci! Mas o dia que marcou a minha vida foi o dia do meu casamento. Se não tivesse acontecido não teria a família feliz de que sou parte. Sem dúvida, foi esse o dia mais importante», até hoje.
Alexandre Linhares Furtado, Cirurgião, quis ir além do que lhe era exigido. O país agradeceu-lhe com a Ordem do Infante e a Grã Cruz da Ordem de Cristo, entre outros reconhecimentos. Os doentes e familiares não o esquecem. As manifestações de estima repetem-se para além da jubilação. «São estas que mais me sensibilizam».
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Acabo de ler o resumo histórico do Professor Doutor Alexandre José Linhares Furtado com uma lágrima no canto do olho, uma lágrima de alegria! De alegria por ter o privilégio de o conhecer como ser Humano e profissional, Humano em todo o bom sentido da palavra, no trato, na disponibilidade, na compaixão, no carinho, no amor… que dedica a quem recorre ao seu conhecimento. Eu sou prova disso mesmo!
Seres Humanos como Linhares Furtado são ímpares! Há uma passagem no resumo histórico que diz tudo! Acredita no destino? «Acredito na sorte e eu tive alguma. Até no feitio com que se nasce é preciso ter sorte e, de um modo geral, sou um otimista».
Que Deus lhe conceda saúde e vida por muitos anos!
Obrigado Professor
José Medeiros e esposa
ReplyCorria o ano de 1979 ou 80 (já não tenho a certeza). Sala de exames orais de Urologia ( HUCs). Cinco matraquilhos a tremer de medo mas com a convicção estóica de enfrentar o “terrivel” Professor Linhares Furtado na oral, antes do exame escrito, carregados de conhecimentos mas toldados com “medo” do que poderia acontecer. Sentados na fila da frente e meia hora depois da hora marcada para o exame, e já só quatro (um de nós, o “cagaço” era tanto que lhe desarranjou a tripa e fugiu a sete pés), ouvem se os passos compassados através da sala. Era o professor. Acho que todos pensamos nessa altura “ai ai porque é que não fiquei em casa!!!”. Nem nos atreviamos a olhar para ele mas reparei que trazia uns papeis debaixo do braço. Sentou-se e disse: “Vocês é que são os valentes ?”. Caiu nos tudo ! Só nos apetecia fugir dali ! Mas perdidos por cem, perdidos por mil. E então o Prof. perguntou: “sabem o que é isto ?”. Abanamos a cabeça. “É uma ECOGRAFIA”. Olhamos uns para os outros e pensamos “agora é que estamos mesmo feitos !” Era a 1ª vez que ouviamos tal termo. E então o Prof. deu-nos ali a primeira lição sobre a ecografia, técnica que estava a dar os primeiros passos em Portugal. Vejam só que “antigos” que somos !!! Depois fez duas perguntas a cada um e disse : “Vocês para estarem aqui é porque estão preparados”. Podem ir e obrigado por me ouvirem. E não se esqueçam da ecografia. É o futuro”. GRANDE PROFESSOR !!! GRANDE HOMEM !!! Tivemos grandes professores em Coimbra, mas o Prof. Linhares Furtado foi o maior ! Deus o proteja e lhe dê uma longa vida como ele sempre tentou dar aos seus pacientes. Obrigado Professor !
Replyfoi meu professor já há uns bons anos frequentava eu a cadeira de Urologia
Replymuito obrigado professor, por tudo aquilo que me ensinou, até fora da medicina
é de seres humanos assim, que o mundo precisa
eternamente grato
A grandeza de um HOMEM avalia-se pelos seus feitos e no caso do Sr Professor Linhares Furtado ultrapassou largamente o espectável em termos de grandeza profissional. Mas este Homem tem muito mais… tem um trato afável, simples, carinhoso e sobretudo uma humildade que nos desarma! Foi sem dúvida um exemplo para mim enquanto meu Professor e Cirurgiao do meu pai. Obrigada pelo exemplo!
ReplyTIVE O PRIVILÉGIO DE CONHECER ESTE GRANDE SENHOR E GRANDE CIRURGIÃO.
ReplysALVOU O MEU MARIDO E A NOSSA VIDA
MUITO OBRIGADA
QUE DEUS O PROTEJA