A incerteza é o que somos capazes de deixar quando partimos… Tu deixas Bondade, Humildade, Amizade, Arte e Sabedoria na relação que devemos ter com os Outros. As tuas “Pinturinhas” vão continuar a emocionar-nos e as tuas cores a brilhar por todo o Mundo.

Amigo, até ao dia em que possamos ler juntos o tal verso:

Na careca de um pintor
Não há paleta nem cor
Na careca do Cargaleiro
Vê-se metade do rosto do pintor…
Na outra metade um grande Senhor.

António Travassos

Recuperamos a entrevista que o Centro Cirúrgico editou em 2016. Uma honra ter conhecido o Mestre.

Há um português que anda a pintar a luz de azul. É beirão, tem pouco mais de um metro e meio de altura (1,64) e o seu trabalho tem reconhecimento internacional. Não porque saiba chutar a bola, mas porque molda sonhos com as próprias mãos. Manuel Cargaleiro transporta este destino há 89 anos e a sua obra veste-se de azul.

A França há muito que se rendeu ao seu trabalho. Itália foi mais longe, atribuiu-lhe um prémio internacional e criou um museu e uma fundação com o seu nome. Muitos anos antes, o governo francês já lhe tinha reconhecido o engenho e a arte, quando o nomeou Oficial das Artes e das Letras. Brasil, Alemanha, Angola, Moçambique Bélgica, Suíça, Venezuela, Arábia Saudita ou o Japão renderam-se às obras criadas pela mão deste português.

E o que faz este beirão, nascido no Chão das Servas e criado no Monte da Caparica, entre o mar e o céu? Expressa-se em desenhos. Os seus quadros são azulejos e os azulejos são quadros. Estranho? Não. «É a minha escrita. Pinto aquelas plantas ou aquelas flores que nascem, crescem e morrem no cimo de uma montanha e que nunca ninguém as viu. Mas elas nasceram por alguma razão. É isso que eu pinto». E é por isso que é reconhecido. «Um pintor ou morre de fome até aos 30 anos ou então nunca mais para». Foi isso que aconteceu.

Manuel Cargaleiro não morreu de fome e ainda não parou. Continua a trabalhar sempre que pode, porque quer «acrescentar mais qualquer coisa» ao que já está feito. E o que está feito é a minha obra. As pessoas podem não gostar, mas é a minha obra e eu gosto muito de a ter feito». Ultrapassada a fase da aceitação, Manuel Cargaleiro nunca mais voltou a ter medo. «Isso acontece no princípio. Eu detestava que me comprassem uma obra, porque a levavam de mim. Tinha medo. Isto é verdade, no princípio não gostamos de nos separar das obras, porque estamos convencidos que já não seremos capazes de fazer outra tão bem como aquela. Esse medo existe, depois perdemos a vergonha. Hoje, mesmo que eu pense que os outros podem não gostar, digo logo, paciência… o problema não é meu». Isto constrói-se e conquista-se. Mesmo assim, Manuel Cargaleiro não aceita que possa ser famoso. Corrige e explica, «sou conhecido de muita gente, tal que também é conhecido pelas pessoas do bairro. Não quero ser diferente, quero passar despercebido, só isso. É a minha maneira de ser».

Confirmamos, porque Manuel Cargaleiro carrega tanto de património cultural, como de simplicidade. É real a descrição que Álvaro Siza faz do mestre, quando diz que «Manuel Cargaleiro é a pessoa mais incapaz de maldade que conheço. Os seus olhos estão focados para o que há de bom nos outros e na vida. A sua visão do mundo é luminosa» e a «perversidade pode passar ao lado, engalanada, as suas cores não estão naquela paleta rigorosa». Somos testemunhas. Há vida e esperança em cada azul usado por Manuel Cargaleiro. O azul reforça essa mesma esperança. «Eu nasci a olhar para o céu e o mar. O azul acompanha-me, está sempre presente, não o procuro, ele aparece, mas o azul só é uma cor».

Como é que tudo acontece? Muito simples, «sento-me, coloco a tela no cavalete e começo a pintar e a fazer desenhos. Primeiro começo pelo fundo, até que aparece a atmosfera que eu quero e a partir daí os desenhos surgem, não procuro nada. Ponho-me a trabalhar e as coisas aparecem. Muitas vezes, passados alguns dias, não gosto do que fiz e posso apagar tudo e começar de novo, isso acontece muito. Há quadros meus que têm um passado de dois ou três quadros». Mas há uma coisa de que não gosta mesmo, «que me encomendem obras, que me digam quero um quadro assim…e assim… em que use os seus azuis.Mesmo sendo essa a minha “horta”, não gosto».

As pessoas aprovam o que faz e sentem os seus efeitos, se assim não fosse, o seu trabalho não seria tão valorizado. «Tenho medo que as pessoas gostem da minha pintura não pelo lado que eu gostava que elas gostassem. Penso muito nisso, mas acho que o público sente o meu sentir e a minha emoção. Quero transmitir a luz e o mistério que há em situações da natureza. É essa a minha mensagem, construtiva e verdadeira». Decididamente, se a arte de cada época representa o retrato da sociedade na altura, a de Manuel Cargaleiro é uma mensagem construtiva, porque «todos nós temos de contribuir, nem que seja com o nosso milímetro, para que o mundo seja melhor».

Manuel Cargaleiro nasceu para este destino. Ainda em criança, um tio chegou a vaticinar-lhe uma vida interessante e com sorte. «Acho que todos temos um destino qualquer para realizar. Oxalá cada um cumpra aquilo que está de acordo consigo. Nada pior do que uma pessoa estar a fazer um trabalho ou ter uma profissão que não gosta». E se não tivesse sucesso como artista? «Bom, seria feliz na mesma, de certeza. Seria professor de literatura ou arquiteto paisagista».

«A minha obra está feita, mas continuo a querer concentrar-me nas coisas que me dão prazer e que eu gosto de fazer», por isso não gosta de sair de casa ou de viajar, «perco muito tempo. Hoje, a vida está mais fácil, mas os atrativos dispersam-nos, por isso os jovens têm tanta dificuldade de concentração. Por exemplo, as pessoas perdem imenso tempo na internet. Se eu for bisbilhoteiro, eu posso saber a vida de toda a gente pela internet. Não é isso que me interessa. Eu prefiro passar uma hora a olhar para um quadro ou aproveitar esse mesmo tempo sem pensar em nada».

Claro que as novas tecnologias são importantes e o mestre também as aproveita. «Uso-as para a minha saúde. Aparentemente, estou muito bem, mas tenho alguns remendinhos, pequenas coisas que funcionam», fora isso «não quero conhecer as novas tecnologias». Confia nos amigos, «nas pessoas que gostam de mim e isso é importantíssimo, principalmente na época que vivemos em que, apesar de tudo ser mais fácil, acaba por se tornar tudo muito difícil».

Aos 89 anos, Manuel Cargaleiro continua a querer dar o seu sentido à vida. «O meu pai dizia, por brincadeira, “estou muito feliz, porque hoje acordei vivo”». Manuel Cargaleiro não esqueceu a frase e explica-nos que basta viver para dar sentido à vida e ainda o quer fazer por muito mais tempo, agora com os sentidos redobrados, porque redescobriu a luz, com ajuda de um amigo. «A cirurgia que o meu amigo António Travassos fez nos meus olhos, mudou-me. Passei a pintar e a ver o mundo de outra maneira». O azul retomou o seu lugar. Aliás, foi um sofá azul que testemunhou esta nossa conversa. Não foi um acaso.

Conceição Abreu

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