Seria possível vivermos numa sociedade em que 50% dos doentes com cancro não eram diagnosticados e em que só metade recebia um tratamento adequado?
Tenho a certeza que não. Com a depressão é isto que está a acontecer.

Conte 40 segundos. Uma pessoa suicidou-se nesse espaço de tempo. São estas as contas que OMS fez para o suicídio. Para a depressão os números são ainda mais impressionantes. De tempos a tempo somos acordados pela pior doença que está a afetar a humanidade – a Depressão. Foi isso que aconteceu recentemente, com a morte do ator Robin Williams, que nos despertou para o drama da depressão e do suicídio. De facto, a depressão é hoje um problema de saúde pública de enormes dimensões.

Neste momento é a principal causa de incapacidade e a segunda causa de perda de anos de vida saudáveis. Afeta mais de 350 milhões em todo o mundo e, na Europa, 25% da população sofre ou irá sofrer de depressão, em qualquer altura da sua vida.

A tragédia dos números continua sem fim. Pessoas que nasceram depois de 1934 têm duas vezes maior risco de desenvolverem um episódio depressivo que indivíduos nascidos antes desse período, enquanto quem nasceu depois de 1964 tem um risco três vezes maior de ter um episódio de depressão, em alguma altura da sua vida. Além do mais, a idade do primeiro episódio tem vindo consistentemente a diminuir, com pessoas a manifestar sintomas desta doença cada vez mais cedo. Devido ao seu carácter recorrente, aproximadamente 60% dos doentes irá voltar a ter um episódio depressivo nos cinco anos que se seguem ao primeiro episódio. Já depois de dois ou três episódios de doença, a recorrência sobe até 70% e 90%, respetivamente. Se não a tratarmos, a depressão aumenta o risco de morbilidade, alterações cognitivas, da memória e do processo do pensamento e, por fim, eventualmente, o suicídio ou a morte prematura.

No entanto, apesar das suas consequências devastadoras, a depressão é subdiagnosticada e muitas vezes subtratada. Estudos apontam para que, em cerca de 50% dos casos, a depressão não seja diagnosticada ou somente o seja numa fase tardia. Estes números são ainda maiores e mais impressionantes em determinadas populações, como sejam os idosos. Mas mesmo quando é corretamente diagnosticada, somente entre 25 a 50% dos doentes recebe um tratamento que se possa considerar adequado.

Todos estes dados, difíceis de acreditar, devem-se a vários fatores, tais como o estigma, a ausência de terapias eficazes e recursos de saúde mental inadequados. De facto, metade dos habitantes do nosso planeta vive em países com menos de um psiquiatra por 200 mil habitantes, quando se estima serem necessários aproximadamente 25 por mil habitantes.

Imaginemos agora, que não estávamos a falar de depressão mas sim de cancro. Seria possível vivermos numa sociedade em que 50% dos doentes com cancro não eram diagnosticados e em que só metade recebia um tratamento adequado? Tenho a certeza que não. Também o cancro é uma doença terrível, afetando 32 milhões de indivíduos e matando aproximadamente 8 milhões de pessoas por ano, muito mais que a depressão. Mas a visibilidade do cancro hoje em dia é muito maior, sendo que a investigação na área do cancro é um campo em expansão, com sofisticados modelos animais, terapias genéticas e imunológicas de ponta e novos fármacos a serem desenvolvidos a uma velocidade impressionante. A própria sociedade tem vindo a ajudar e a envolver-se na luta contra este flagelo. No mês de outubro todos corremos pelo cancro da mama e/ou usamos um laço cor-de-rosa, enquanto em novembro os homens deixam crescer o bigode, contra o cancro da próstata, entre muitas outras importantes campanhas que recolhem fundos para o combate a esta doença.

A depressão tem vindo a ficar para trás neste combate e é necessário que se volte a colocar na agenda. Alguém se lembra de alguma campanha para recolha de fundos para esta doença? A resposta já a sabe, é não!

Necessitamos urgentemente de envolver a sociedade, de aumentar o investimento e, acima de tudo, de combater o estigma e deixar as pessoas falarem sobre a sua doença sem serem julgadas. O estigma e a vergonha precisam ser combatidos, tal como já combatemos o estigma do VIH assim como o do cancro.

Tal como em 1971, quando os EUA declararam “guerra ao cancro”, necessitamos o de declarar “guerra à depressão”. Estamos numa altura ideal para o fazer. Os avanços tecnológicos são imensos e a nossa capacidade de perceber a complexa relação entre fatores genéticos e ambientais é maior que nunca, tal como o entendimento que temos do órgão mais complexo alguma vez criado – o cérebro. A neuroimagem permite-nos espreitar para dentro do cérebro, com recurso a técnicas como a Ressonância Magnética e a PET.

Psiquiatras e neurocientistas têm vindo a descobrir novos circuitos cerebrais envolvidos na doença e novas terapêuticas têm vindo a surgir, muitas vezes simplesmente a redescoberta de fármacos antigos. Ao perceber-se que o glutamato, um neurotransmissor, estava envolvido na depressão, demonstrou-se que é possível desenvolver alternativas às terapêuticas existentes, que já começaram a ser testadas e que devem entrar no mercado nos próximos anos.

Resta-nos continuar a procurar. Sabemos que algures dentro desse 1,5 kg de massa cerebral, composto por biliões de neurónios, está uma resposta para as origens da depressão e a chave para uma eventual cura. É nossa missão descobri-la, para benefício de todos.

Até esse momento vamos continuar a tratar a depressão com recursos a terapias farmacológicas, psicoterapia ou de preferência a uma combinação das duas. Quando adequadamente tratada, 80% dos doentes irá responder ao tratamento. Já é um ótimo começo!

Tiago Reis Marques

(médico psiquiatra)

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