O cérebro humano é uma fábrica de produtos químicos que aceita, transforma e controla tudo. Quase tudo… E até chega a transformar lícitos em ilícitos. Trazemos os exemplos do álcool e do chocolate
Dois amigos, ainda jovens, conversavam animadamente numa sala de espera de um serviço de sangue no Centro do país. Manhã invernosa, em pleno janeiro dos anos 60, com um frio de rachar na rua, mas confortável naquela sala meia despida e sem grande movimento. Florentino, com um ar descontraído, corpulento e de mãos sapudas, abria-se num sorriso fácil enquanto falava. Foi retirado da escola bem cedo, não chegando a fazer a 3ª classe. Sendo o mais velho de uma família de sete, com quatro cachopas e três rapazes, foi chamado em tenra idade ao trabalho do campo, atrás de um arado puxado por uma mula que pachorrentamente abria o coração da terra de sementeira.
Para dar força comia, quando havia, sopas de cavalo cansado. Por volta dos 15 anos ficou maltês, porque, segundo dizia, o salário do velho não dava para tanta boca. A independência no trabalho e no ganho era uma imensa responsabilidade, acrescida da vigilância que tinha que fazer aos namoros das irmãs, todas elas iletradas como se usava na altura. Este adulto jovem, agora com 25 anos, envelhecido na côdea da terra ribatejana, tirou um dia de trabalho para dar sangue, em prol de um conterrâneo, vítima de acidente com uma máquina.
O seu amigo Ramiro, que tinha partilhado com ele os dois primeiros anos na escola primária, era outro assalariado trabalhador do campo, com um percurso de vida semelhante, numa família menos numerosa.
– Senhor Florentino Lameiras… Era a voz de chamada para entrar noutro compartimento de estilo hospitalar, onde se encontrava uma médica de bata branca que, depois do cumprimento, lhe pediu para se sentar junto à secretária.
Não era ainda para lhe tirar sangue.
– Diga-me que doenças já teve. Os remédios que está a tomar. Se já foi operado. E a razão por que quer dar sangue.
Respondeu sem grandes pressas, enquanto a médica escrevinhava numa folha.
– Então e tabaco e bebidas?…
– Senhora Doutora, tabaco nunca fumei e penso que não ia gostar, agora vinho bebo como toda a gente da minha terra. De preferência às refeições, mas às vezes ao fim de semana a jogar à malha, ou às cartas, sempre vão uns copos sem acompanhamento…
– De que quantidades é que estamos a falar?
– Bom não é uma coisa certa, mas talvez aí uns dois litros…
– (Surpresa)… Por semana?
– (Riso aberto)… Senhora doutora o trabalho é pesado e só um litro está incluído no contrato. Por dia. Estamos acostumados, mas realmente bebe-se bem…
A jovem clínica, que nunca tinha emborcado um copo, não acrescentou mais linhas aos antecedentes pessoais e mandou deitar o jovem na marquesa para dar início à colheita.
Quando entrou o Ramiro, as perguntas dirigiram-se de imediato ao essencial, e, sem qualquer hesitação, o segundo jovem repete a mesma história. Acrescentou que não guiava porque não tinha carta, nem tinha dinheiro para carros, e que se deslocava de bicicleta para o trabalho. A nossa médica ficou a pensar que se o resto da região é deste quilate, deve tratar-se de uma terra de grandes bebedores.
E o que são os grandes bebedores?
Bom, na Alemanha, durante a festa da cerveja, qualquer alemão médio bebe 10 litros de cerveja num fim-de semana. E, apenas com amendoins e tremoços, também se emborcam muitos litros de cerveja por cá, a partir de sexta-feira e pela noite dentro. Quando não acompanhados de shots de álcool com alta graduação, até à exaustão e, por vezes, ao coma!.. Sem regras, e, por vezes sem decoro. Cada vez mais em jovens, com cérebros imaturos. Rapazes e raparigas. Sem distinção.
Até cair…
Já se conhece a existência do álcool por destilação de cereais no Crescente Fértil, desde há 12000 anos. Álcool que reforça o efeito inibidor de um transmissor cerebral GABA (ácido gama aminobutirico) e atua como depressor do sistema nervoso. A dose, a graduação e a velocidade de ingestão fazem a diferença.
Utilizado como analgésico – bem documentado nos filmes do far-west – pode, em doses baixas, apenas diminuir os controles inibitórios, provocar uma fase de excitação conhecida como o “grão na asa “, alterar a marcha e a linguagem por viciação dos neurónios que se projetam no cerebelo e, em níveis altos, provocar grande depressão da frequência respiratória e cardíaca e falência funcional total.
Como contornar o decréscimo do declínio cognitivo?
A regra básica no pressuposto de evitar o risco máximo de insanidade mental ou mesmo da própria vida é a aquisição do conhecimento, a preparação e a cautela. Os riscos maiores ocorrem sempre que não existe o conhecimento adequado, a preparação para os eventos e a prudência necessária para não mastigar cicuta, pensando que são ovas de esturjão. Todos os alimentos químicos da natureza são potencialmente mortais. Depende do casamento que fazem com outros elementos, do estado de excitação em que cada um se encontra e do nível de concentração num determinado espaço, entre outros.
O hidrogénio, elemento dominante na constituição do Sol e responsável pelas explosões constantes na maior estrela que é a nossa fonte de luz e calor, casado com o oxigénio, também forma água, da qual dependemos totalmente. O oxigénio, indispensável à vida humana e sem o qual o nosso cérebro morre em apenas 3 ou 4 minutos, quando mal casado, forma radicais livres que matam literalmente todas as células. Aliás, o simples excesso de concentração de oxigénio na terra há 2500 milhões de anos, após a extraordinária libertação de O2 das cianobactérias, conduziu ao chamado holocausto de oxigénio, alteração da camada de ozono, arrefecimento anormal entre 2350 e 2200 milhões de anos, glaciação com expansão do gelo dos polos para o equador. E a vida na terra esteve por um fio, para os únicos seres vivos existentes à data, eucariotas unicelulares. Muitos milhões de anos antes da existência do maior predador do planeta. Com o melhor dos sorrisos até o oxigénio pode ser mortal, tal como a melhor droga pode ser SEMPRE mortal.
Casamentos com risco?
Riscos acrescidos acontecem quando se casa o álcool com companhias perigosas, que se passeiam livremente por todo o mundo, e recebem louvores de papas e presidentes. No século XVII, um distinto médico inglês, Thomas Sydenham, teve a ideia de juntar ópio, açafrão, canela, cravinho e vinho das Canárias, e encerrar o composto numa bonita garrafa de vidro, cognominando-o Láudano de Sydenham. Ora o distinto Sydenham, médico, cognominado Hipócrates inglês devido à medicina humanizada, que faria inveja aos clínicos de hoje, aconselhava o
Láudano para a dor em geral, e em especial na gota. Contudo, também foi administrado a mulheres grávidas e crianças agitadas…
Outro inglês, Thomas Quincey, escritor do século XIX, experimentou o Láudano para uma dor de dentes, ficou viciado para o resto da vida e escreveu um livro sobre a sua dependência. O ópio fez a diferença. Escritores como Eça e García Márquez, conscientes dos efeitos do Láudano, imortalizaram a mistura em sórdidas conjeturas de mortes por envenenamento em os “Maias” e “ Cem anos de solidão”.
Outro caso paradigmático de casamento não aconselhado aconteceu no século XIX, com o célebre “ Vin Mariani”, que resultou da mistura de vinho de Bordéus com extratos de planta de coca, bebida cujos rótulos continham testemunhos de um Papa, um presidente dos EUA e de Edison. Claro, que com todos estes apoios foi um sucesso comercial, que conduziu – alguns anos depois – a uma pequena alteração do composto, resultando num outro sucesso ainda maior, chamado… Todos sabem como… O composto psicoativo do Vin Mariani, cocaetileno é mais lipossolúvel que a cocaína, entrando mais depressa no cérebro…
Com efeito combinado euforizante, e altamente viciante. O neurotransmissor cerebral do prazer fica a rir-se, entre as sinapses neuronais, quando vê de braço dado a cocaína ou a morfina, com o vinho do almoço ou, o shot da noite… Até
Sigmund Freud, que discerniu sobre as entranhas da mente, declarou, que curou a dependência da morfina, com uma dependência totalmente compulsiva de cocaína, a mesma que casou com o vinho do Mariani.
Canabinóide no chocolate?
Helena, minha amiga, gostava de chocolates. Sobretudo pretos, com um índice de cacau entre 76 e 81%, superior ao seu índice de massa corporal. Era uma simpatia. Irradiava frescura, boa disposição e tinha aquele sorriso sempre presente… Um dia, numa tarde de Outono, entrou numa chocolataria, comprou uma caixa de bombons com cerca de um quilo, alguns com licor lá dentro, sentou-se a uma mesa e, sem pressas, deixou a caixa vazia… Vingou-se dos conselheiros de dietas para emagrecer… Abriu o seu melhor sorriso e disse:
– Por hoje está feito…
O chocolate, o meu favorito, contém uma pequena quantidade de um canabinoide,
anandamida, também produzido pelo cérebro, alguns compostos do tipo estrogénio, uma molécula parecida com a anfetamina – feniletilamina (FEA) – e ainda pequenas quantidades de um aminoácido chamado tiramina. Vejamos como nalguns casos, a ingestão de chocolate pode provocar prazer e noutros casos fúria.
A FEA é metabolizada rapidamente por uma enzima (MAO) – monoaminoxidase – de forma que, quando consumimos uma tablete de chocolate preto, 50% da FEA – parecida a uma anfetamina – desaparece em poucos minutos. Portanto, chega em pouca ou nenhuma quantidade ao cérebro. Por outro lado, o aminoácido tiramina, também ele metabolizado pela MAO, indutor da libertação de adrenalina, pode ocasionar hipertensão arterial, cefaleias, náuseas e aceleração do ritmo cardíaco.
Pessoas vulneráveis podem ter mudanças bruscas de humor, depois de comerem chocolate com alto teor de cacau, sobretudo na presença de inibidores da MAO, por exemplo o fumo do tabaco e antidepressivos. Nestes casos, os efeitos psicoativos da anfetamina e da tiramina sobrepõem-se ao efeito calmante da anandamida. Este canabinóide, com milhares de recetores cerebrais à sua disposição inibe a libertação de glutamato e acetilcolina no córtex cerebral e hipocampo, comprometendo a formação de novas memórias.
A mesma substância, com doses diferentes e na presença de outras soluções pode conduzir a manifestações comportamentais antagónicas. Aplica-se aqui também a Lei do Valor Inicial: – cada pessoa tem um nível de excitação inicial, determinado por fatores genéticos, pela fisiologia, situação de doença, fatores ambientais ou historial de drogas.
Comer chocolate é bom, dá habituação mas é gratificante. Contudo, pode acontecer, sobretudo nos homens, grave excitação e irritabilidade, talvez relacionado com os estrogénios nele contidos.
Mas… Chocolate preto é mesmo bom… Em doses moderadas.
António Raimundo Fernandes (médico neurocirurgião)
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