A cafeína é a substância psicoativa mais consumida em todo o mundo. Pertence ao grupo dos estimulantes cerebrais, a par com a nicotina e as anfetaminas e, como em todas as drogas, a dose conta… Se compararmos o nosso cérebro a uma grande orquestra o vício pelo café pode funcionar como antagonista de alguns instrumentos. O resultado pode ser muito bom ou muito mau. Hoje explicamos a reação do cérebro a este antigo “vinho muçulmano”

O nosso cérebro é como uma grande orquestra numa luxuosa sala de espetáculos. As paredes são forradas a cetim, com passagem apenas ao nível das portas e janelas, e um grande corredor, com acesso privilegiado à sala das máquinas. Da sala das máquinas – tronco cerebral e medula – saem nervos que permitem todos os movimentos do corpo, exceto os nervos ótico e olfativo que, apesar de não saírem do tronco cerebral, estão incluídos na casa das máquinas.

Claro que, nesta orquestra, o maestro é cada um de nós. Os 40 a 100 mil milhões de neurónios são os músicos que tocam diferentes instrumentos, associados por naipes – violinos, trompetes, clarinetes, flautas, etc. – mas sempre coordenados pelo maestro. É ele que estabelece a harmonia e comanda os sons e os movimentos, sendo que há instrumentos que tocam em modus automático, sem serem impulsionados pela vontade do maestro. 

Exemplo desse modus: a respiração e o batimento cardíaco, que funcionam sempre, esteja o maestro acordado ou a dormir. E estes órgãos trabalham sem a ação da vontade. Não se pode parar o coração só porque queremos, e a respiração só pode ser interrompida temporariamente, com o piloto automático atento ao recomeço.

Instalados na sala de concertos, os instrumentos, neurónios, só tocam as melodias que vão aprendendo. Quanto maior a aprendizagem, maior o repertório. Claro que pode existir um improviso, que poderá resultar bem com os instrumentos em sintonia, tal como pode haver uma melodia de fundo, e há, efetivamente quando o maestro está a dormir, mas a aprendizagem e a performance dos músicos, torna todos os intervenientes conscientes dos seus papéis, garantindo a perfeição na harmonia e no ritmo.

Não há atropelos e todos sobem e descem com elegância e articulação. Os instrumentos articulam-se facilmente entre si, sabendo sempre que uns reforçam a força do seu grupo, e outros a contrariam. Como os neurónios que podem ser ativadores de uma função e outros que serão inibidores dessa mesma função. Sabendo que uns reforçam a função dos ativadores e são agonistas, e outros que se opõem e são antagonistas. 

Sabendo ainda que o reforço exagerado da função, pode ter um mau resultado, como os instrumentos a tocar tão alto e tão rápido, que distorce o resultado pretendido. Ou os antagonistas a opor-se a tal ordem, que não permitem o avanço da música, e stop, baile parado, cérebro bloqueado. Este exemplo serve para ilustrar de forma simples como o vício de hoje, pode funcionar agonista de uns, e antagonista de outros instrumentos, e como o resultado final pode ser muito bom ou muito mau.

Comecemos pela história.

Um sumo pontífice, do século XVI/XVII, Clemente VIII, teve um pontificado curto, de apenas 13 anos, mas pleno de emoção. Eventuais encontros com ciência oculta, bem expressos nos versos de José Régio, em Cântico Negro. Clemente teria tido encontros que alteraram eventualmente o rumo da sua vida.

Nos finais do séc. XVI foram introduzidas na Europa, as chamadas “lojas de café”, onde se bebia o líquido quente e negro, alcunhado de “vinho muçulmano”. Dizia-se então que era afrodisíaco e diabólico. Ora a inquisição, sempre de ouvido à escuta, resolveu proibir o agente revolucionário da altura, até que, por obra sabe-se lá de quem, foi dado a provar a Clemente VIII. E aqui começa a dúvida, a minha, claro.

O Papa provou o líquor sarraceno, gostou imenso e disse: Afinal a bebida do Diabo é mesmo boa… Havemos de lhe dar a volta –ao Diabo– e rebatizá-la – à bebida. E assim, passou a ser permitida aos cristãos daquele século, bebida tão prazerosa, como viciante. Mas houve outro encontro de sua Eminência que não ficou bem explicado. Giordano Bruno, contemporâneo de Galileu, cosmologista, helicentrista, filósofo e livre-pensador eminente não atinava com algumas práticas de igreja e expressou-se livremente. Sem bater em ninguém. Apenas opiniões verbais e, claro, também foi dizendo que o centro do Universo não era a Terra, mas o sol. Pondo em causa a opinião vigente, que já vinha de Aristóteles.

A inquisição não perdoou, nem Clemente VIII, e Giordano foi queimado na fogueira!.. Nem mais… Clemente não esteve bem em relação a Giordano Bruno, e talvez por isso terá tido um encontro macabro. Exatamente em 1600, alguém colocou no prato de sua Eminência um petisco que também mata muita gente nos nossos dias. É verdade, num prato bordado a ouro, estava o mais feroz dos cogumelos, Amanita Phalloides, também chamado “cicuta verde” e alcunhado nem sei por quem, de “anjo destruidor”, matou em menos de 10 dias e aos 69 anos, Clemente VIII.

Só podia ter sido a mão do Diabo, a colocar na mesa do Papa, um anjo destruidor. Poderia ter sido o acaso, mas também podia ter sido um engano… Voltemos à sala de concertos, onde existem os tais instrumentos agonistas e antagonistas.

Ora, outro cogumelo da família Amanita – Amanita muscarea – foi utilizado desde há 12.000 anos em rituais religiosos. E isso, porque provoca euforia e felicidade, mas também alucinações visuais, em que os objetos, aparecem maiores ou mais pequenos. Lewis Carroll, quando escreveu Alice no País das Maravilhas, utilizou o conhecimento de um amigo, micologista famoso, que lhe passou essa informação.

E qual o papel de tudo isto na orquestra? É que a muscarina é um recetor agonista da acetilcolina que, sobrestimada, provoca grande agitação, com efeito alucinogénio. Teria havido, eventualmente, um engano nos Amanitas, e o Papa teria sido induzido em erro pelo anjo destruidor.

Mas, na sala de concertos, onde a orquestra atua diária e ininterruptamente, a cafeína, substância psicoativa mais consumida no mundo é, segundo a FDA, uma substância segura e utilizada para múltiplos propósitos. No entanto, em 1912, o governo dos EUA, quis forçar a Coca-Cola a eliminar a cafeína da sua composição porque, alegadamente, o uso excessivo daquela bebida num colégio de meninas conduzia a frequentes desmandos noturnos, propiciando imoralidade e quebrando as regras da escola. O governo não conseguiu levar a melhor, mas introduziu duas iniciativas de lei, colocando a cafeína na lista de “substância criadora de hábitos” “podendo causar dano”.

Isolada no século XIX, a cafeína encontra-se em plantas, sobretudo de café, chá e cacau. Pertence ao grupo dos estimulantes cerebrais, como a nicotina e as anfetaminas. Bebe-se, portanto, café, para reduzir o sono e aumentar a atividade física. Se entrarmos novamente na orquestra, verificamos que a cafeína é um antagonista da adenosina. Ou seja, o João Pestana do cérebro que, por sua vez, é antagonista da acetilcolina. Portanto, ao inibir os recetores de adenosina, reforça a atenção, mantendo-nos acordados.

Como em todas as drogas, as doses contam e cafeína em excesso provoca tremores generalizados, hipertensão arterial e hipervigia. Pode ainda desencadear também, um aumento da atividade de dopamina, com a ativação simultânea dos canabinóides, dando habituação.

Para quem não gosta do amargo do café, pode soltar os cordões à bolsa e tentar o Kopi-Luwak (café civeta), em que os grãos de café são extraídos das fezes do civeta (espécie de gato da Somália e Mali), já que, os enzimas intestinais do gato, deixam passar as sementes de café intactas, produzindo um café de alta qualidade – 1000 dólares/quilo – menos ácido e menos amargo. Se quiserem só um café, pagam 50 euros. O pessoal do Brasil também pode beber um café especial, cujos grãos são colhidos diretamente das fezes do Jacu (ave da América do Sul).

Não esquecer que a cafeína é diurética, provoca acidez e é hipertensora. Cuidado sobretudo na gravidez e na amamentação. Os ciclistas e os halterofilistas utilizam frequentemente a cafeína como estimulante, sendo por isso mesmo necessário um cuidado especial, pelo fato de esta ser uma droga psicoativa, que exige, como em todas as drogas, atenção aos excessos, que podem matar…

Raimundo Fernandes
(Médico Neurocirurgião)

Deixar um Comentário