Quanto mais penso no poder, nas diferentes formas de poder, mais me convenço que o poder dos homens é uma doença. De facto, o poder é tão doentio que se alimenta da sua própria doença.
Pode ocorrer por transmissão genética e passar de pais a filhos. Pode ser de natureza divina, e quem sou eu para contestar esse poder. É, a maior parte das vezes, adquirido como uma doença inflamatória ou infeciosa e, como tal, depois de um período inicial, de algum pudor, alastra progressiva e exponencialmente até ao ponto de termos de nos socorrer de grandes e variados recursos para o eliminar. Na realidade, não consigo imaginar que o poder não tenha que ser, sempre esvaziado, porque de facto o balão, cujo enchimento se perpétua no tempo, autoalimenta-se até se perder o controlo do seu volume.
De facto, o poder é tão doentio que se alimenta da sua própria doença. Não o poder imaterial, o poder da palavra, o poder da música, o poder da sedução. E não raras vezes, é a doença que destrói o poder. De tal forma que se esconde a doença e se amordaça o detentor ou detentores do conhecimento, conferindo-lhes um poder absoluto amordaçado.
Galileu livrou-se da fogueira, renegando o conhecimento adquirido, contrário ao poder absoluto da igreja, para além da ciência. Um poder científico, esmagado pelo poder da presunção, qual síndroma de Húbris, que Aristóteles definiu como a humilhação da vítima, com o castigo, por alguém que pensa que tudo pode fazer.
Inúmeros casos ocorreram no atual e no anterior século, que ilustram a relação de governantes poderosos com a ficha clínica e os por vezes amordaçados, guardiões dos segredos mais preciosos do ser humano. Confiro, portanto, o poder absoluto num cofre bem fechado ao médico, que não se apercebe, a maior parte das vezes do poder, nem dos riscos que esse conhecimento pode acarretar.
Quando a vida de outrem está nas suas mãos, quando a decisão de morrer ou viver está nas suas palavras, quando a violência ou brandura dos seus gestos desfaz o sonho ou ilumina a alma, quando o veredicto, na sua posse, faz suspender a respiração por segundos intermináveis.
É um poder maior que a decisão de atacar…ou não. É um poder quase absoluto, além do padre, do juiz e do presidente. A ficha clínica é um documento que contém todos ou quase todos os segredos de uma vida. A sua divulgação poder fazer cair o mais poderoso, ou que pensa como tal. Como a não divulgação pode perpetuar ao comando de um avião um psicopata, que resolve suicidar-se e arrastar consigo desconhecidos e desconhecedores dos segredos da ficha.
Sobrepõe-se o segredo profissional, sempre, ou quase sempre, aos mais altos interesses do Estado, sendo que a salvaguarda desses interesses pode ser questionável, face ao possível desfecho contido na ficha clínica?
Admito que não é fácil, nem linear, uma posição completamente fundamentada. Pessoalmente aceito e reitero a divulgação da ficha clínica em cargos públicos de grande relevância, como a presidência e chefia de um governo, não só pela transparência perante os votantes, como pela prevenção de males maiores durante o exercício do poder.
Não raramente se vê a despudorada devassa da exposição pública dos segredos clínicos de ex-governantes, já sem poder, num período em que o interesse público já não está em jogo. Depois da renúncia política de Richard Nixon, no cargo de Presidente dos EUA, envolvido no famoso caso Watergate, soube-se, quase de imediato, que sofria de graves problemas com o álcool e há documentação atual que comprova o seu afastamento de decisões importantes, por parte de um staff limitado próximo do poder.
Os médicos próximos do Xá da Pérsia esconderam do público, nos anos 70, a enfermidade de que sofria – leucemia linfoide – e o tratamento a que era submetido, na fase crítica de transição do regime, com grave repercussão mundial. Theodore Roosevelt, asmático, bipolar, Prémio Nobel da Paz em 1905 e Presidente dos EUA, escondeu do público que sufragou a sua eleição, a cegueira de um olho e a epilepsia que sofria. Morreu em 1919 com 60 anos.
O diagnóstico popular de Hitler era de completa loucura, face à enormidade dos crimes que praticou e ao estilo enraivecido com que se expressava. No entanto, na fase em que produziu a maior parte das suas ideias, a síndrome de presunção, com os seus juízos, intuições e presunções, era tudo o que contava. Dois perfis psicológicos, encomendados pela CIA em 1943, revelaram o diagnóstico de psicopatia neurótica, próximo da esquizofrenia. Após 1941 desenvolveu doença de Parkinson. Com esta ficha clínica, não disponibilizada, foi o principal arquiteto da segunda guerra mundial e inspirou o genocídio dos judeus, onde perderam a vida mais de 6 milhões de inocentes.
Algum tempo depois de largarem o poder, Margaret Thatcher e Ronald Reagen, diagnosticados com a doença de Alzheimer, não foram importunados durante o exercício do poder máximo, por eventuais transtornos clínicos que poderiam comprometer o exercício do seu mandato.
Democratas, como John Kennedy, fizeram das suas fichas clínicas um segredo de Estado.
Kennedy sofria de insuficiência supra-renal – doença de Addison – sendo submetido a tratamento com corticoides, desde tenra idade. Devido a problemas de coluna – operado duas vezes – fazia tratamento com opióides, quase diariamente. A doença e o tratamento poderiam eventualmente afetar decisões importantes, como o conflito dos mísseis com os soviéticos em Cuba, mas o grande público só teve conhecimento da ficha clínica após o seu assassinato em 1963.
Sendo o poder uma oportunidade para determinar os acontecimentos, os líderes resistem à ideia de que possam estar doentes. A presunção que se desenvolve algum tempo depois do exercício do poder é um síndroma grave, de que padecem muitas fontes de poder, onde só conta a sua opinião, as suas intuições, e o casulo pode engrossar até ao poder absoluto.
E o médico não escapa a este escrutínio de transparência, pelo poder imenso que tem e pelo facto de ser também um potencial doente como qualquer outro. Ter a vida do seu semelhante na mão é uma responsabilidade e um risco diário contínuo, de tal ordem que a sua ficha clínica não deveria ser conhecida, na maior parte dos casos, só após a sua morte.
O poder consagrado pelo uso, desde o homo sapiens, está bem representado pelo macho transnacional que, no Médio Oriente, não reconhece as mulheres como seus iguais, e o crime maior é mesmo ser mulher. No nosso retângulo, as mulheres têm direitos, alguns, mas também podem levar porrada. E não é a porrada à antiga, em que os maridos batiam nas mulheres. Agora, os namorados também ganharam direitos acrescidos sobre as namoradas e surram como de coisa natural se tratasse. Até os meninos de hoje, que se misturam em colégios mistos, já fazem a vida negra às meninas e, se não batem, pelo menos já começam a espezinhar. É este o poder do século XXI, o poder da força consagrado pelo uso, porque era assim e para manter a tradição, a violência masculina é desdramatizada.
Ao poder tomado pela força, serve de exemplo o poder atual do Brasil, que na falta de argumentos para utilizar as armas, se utilizou a força das palavras, o descontentamento dos sempre descontentes e o apoio sub-reptício das vozes surdas de grandes poderes. Fácil de obter, sem necessidade de ir a votos. Espero que não passe a constar do poder consagrado pelo uso. Pois é, o poder é, sem dúvida, uma doença secular, que nunca foi combatida convenientemente. Estando provado que não é necessário ter sistema nervoso para haver modificação do comportamento, e sabendo-se que o poder é uma doença do cérebro, o comportamento de Donald Trump poderá estar relacionado, com a falta de cérebro e não com o excesso de poder.
Raimundo Fernandes
(médico neurocirurgião)
O poder começa pela ambição mal direccionada, desmedida, auto centrada. São indivíduos que circulam à sua volta e preparam cuidadosamente, estabelecendo estratégias sempre no sentido de atingir um lugar com visibilidade, muita visibilidade pública. os comportamentos nesta fase levam à exaustão de quem os pratica, porque agradar a quanto mais melhor, é cansativo. Nunca são transparentes em termos de sentimentos, porque se servem na expectativa de virem a ser servidos . Depois, atingido o poder, continuarão iguais a si próprios. Acredito pois ” que o poder é uma doença do cérebro “.
ReplyMuito bom, este artigo!
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