Há fatores de risco que todos nós podemos modificar, aos 60, aos 80 ou aos 100 anos…, mesmo quando os músculos e as articulações já são uma lata velha que range ao movimento. A ciência diz que 40% dos quadros demenciais podem ser prevenidos
A um mês de fazer 100 anos, o então maçon mais velho do mundo, “humanista, bondoso, modesto, sereno, solidário lutador, democrata e republicano”, amigo de Torga, e dos nomes políticos mais influentes, na viragem do século XX, apresentava alterações cognitivas com evolução de alguns meses.
Após uma queda acidental, os familiares notaram modificação do seu dia-a-dia. Menos comunicativo, com alguma confusão temporal, a perder o eixo fluente do seu discurso anterior. Deixou de guiar o “carocha” e de fazer os seus quotidianos passeios à beira do rio Alva. Estava sem dúvida diferente, mas começaram por atribuir ao peso dos 99 anos, e não relacionaram com a pequena e quase insignificante queda acidental, até que começou com cefaleia persistente e alguma flutuação do estado de consciência ao longo do dia.
Exames imagiológicos revelaram hematoma subdural crónico. Cérebro comprimido unilateralmente por grossa lâmina de sangue, provavelmente por rotura nervosa intracraniana. Quadro clássico e cirurgia adequada à situação.
Ao fim de uma semana, exame neurológico normal e funções nervosas superiores sem défice assinalável. Conversa agradável a caminho dos 100 anos! … Postura impecável, memória invejável, galanteador para as mulheres, de quem dizia, serem o esteio viçoso da nação, e para os jovens que empurravam o tempo para o futuro.
Retomou os passeios à beira do Alva e o comando diário do “carocha”, bem como o convívio com os seus amigos até depois dos 103 anos. Continuava a saber tomar conta de si, sem necessidade de bengala física ou psicológica. A confirmar que a degradação intelectual pode combater-se com a correção dos fatores modificáveis, nomeadamente o tabagismo, o alcoolismo, a diabetes, a obesidade, o isolamento social, a inatividade física, os traumas cranianos repetidos, a surdez, a depressão, e outros.
O cérebro que, aos 55 anos, ocupa 92 % da capacidade intracraniana, pode ocupar apenas 82 % aos 90 anos, por atrofia continuada, mas com um número de ligações neuronais suficientes para manter a mente em funcionamento pleno. Mesmo nos casos em que músculos e articulações já são uma lata velha que range ao movimento.
A revista Lancet atualizou em 2020 uma revisão sobre fatores de risco modificáveis associados às demências e concluiu que a correção desses fatores pode prevenir até 40 % dos quadros demenciais, diminuindo o risco de lesão do cérebro e aumentando a reserva cognitiva.
Empenhamento individual e cuidados desde o início da idade adulta, quando o cérebro, já maduro, começa a envelhecer por volta dos 30 anos. Equacionar alimentação saudável, por exemplo com dieta mediterrânea, exercício físico regular, treino mental e convívio social, sono reparador e investir no bem-estar, seu e dos outros.
Fazer do tempo disponível a partir dos 65 anos, um tempo de prazer, com um redondo “não” ao sedentarismo, ao isolamento e à cantilena do “peso da idade”.
Demonstrar que é possível escrever um livro aos 80 anos, pintar um quadro aos 90, fazer passeios à beira do rio aos 100 e em todas as idades visitar galerias, socializar com os amigos, tocar um instrumento musical, ler e aprender coisas novas, distribuir carinhos e afetos e, sempre, respeitar e ouvir os outros. E ainda, guiar um “carocha” aos 103 anos. Um exemplo, aquele beirão do interior…
A demência é apenas a 7ª causa de morte em todo o mundo, mas juntamente com os acidentes cérebro vasculares e os traumatismos crânio encefálicos repetidos, uma das primeiras causas de morbilidade, arrastando cuidadores, familiares, amigos, comunidades locais e estruturas nacionais. Uma verdadeira pandemia no séc. XXI.
Raimundo Fernandes
(Médico, Neurocirurgião)
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