As dores são frequentes e o nosso poder para as evitar e tratar ainda é limitado. A questão é complexa e às inúmeras teorias que podem explicar porque sofremos de dor de costas, junta-se mais uma, a da autoimunidade…

Sofremos de dor de costas porque nos esforçamos de mais, por um lado, e também porque nos esforçamos pouco, decorrente da vida sedentária atual. Sofremos porque é genético e sofremos porque adquirimos lesões ambientais ao longo da vida; sofremos porque está frio e porque está calor. Sofremos porque a alimentação não é saudável (seja qual for a definição de alimentação saudável, que está sempre a mudar); sofremos porque andámos de mais no dia anterior e sofremos porque dormimos de mais na véspera. Sofremos porque carregamos malas pesadas e sofremos porque não vamos com frequência ao ginásio fazer musculação com pesos pesados?! Sofremos porque temos a coluna torta… Mas a dor mantém-se mesmo depois de a endireitarem.

Pode-se dizer uma coisa e o seu contrário, a probabilidade de acertar no que alguém aconselha relativamente a este tema será sempre alta. Há explicações populares e mesmo profissionais para todos os gostos. Na realidade, não sabemos bem todos os mecanismos subjacentes às dores de costas, que podem ter múltiplas origens anatómicas e fisiopatológicas.

Estima-se que cerca 36% dos portugueses, sobretudo mulheres, sofram de dor lombar, cuja prevalência vai aumentando com a idade. Ao longo da vida, cerca de 70% das pessoas têm pelo menos um episódio de dor de costas. A causa da dor é, na maioria das vezes, desconhecida, mas há alguns fatores de risco conhecidos, como posturas incorretas (como estar muito tempo sentado), obesidade, depressão ou a idade.

Existem várias teorias para justificar a elevada incidência de dor lombar. Uma das mais recentes e aceite é a da inflamação / autoimunidade, fenómenos que ocorrem nas alergias. A sua compreensão ajuda-nos a perceber porque é tão frequente a dor e os limites do nosso poder para a evitar e tratar. A cartilagem, que constitui o disco intervertebral (onde surgem as hérnias discais) e reveste internamente as facetas articulares (onde surgem as “artroses” ou “bicos de papagaio”), tem uma série de características peculiares, entre as quais a de não ser vascularizada, logo nutrida por difusão. Assim, os glóbulos brancos que circulam nos vasos, como normalmente não entram na cartilagem íntegra (não lesionada), não a “conhecem” e como tal não identificam uma cartilagem normal.

Quando surge uma lesão (fissura) na periferia da cartilagem ou, pior ainda, se o seu núcleo sai através da fissura, constituindo uma hérnia discal, uma protrusão, procidência, extrusão, etc., os glóbulos brancos, que circundam os tecidos à volta, poderão contactar pela primeira vez com o interior da cartilagem. Como os glóbulos nunca “tinham visto” esta cartilagem antes, vão assumir que se trata de algo estranho, como um vírus, uma bactéria ou mesmo uma neoplasia e, como tal, vão desencadear uma resposta. É esta reação que vai eliminar aquilo que interpretam como uma ameaça, nomeadamente uma complexa resposta inflamatória, libertando uma série de moléculas que vão destruir ainda mais a cartilagem e irritar os nervos à volta, provocando dor inútil (a dor útil é aquela que nos alerta para uma ameaça – que neste caso não existe).

Há imensos fatores que podem afetar o sistema imunitário, como o nosso estado de humor (stress, ansiedade, cansaço), a nossa alimentação (alguns componentes dos alimentos podem estimular o sistema imunitário, como o glúten), o contacto com alguns vírus, mesmo que benignos, um “escaldão” do Sol, mudanças de temperatura e outros. Daí que as dores de costas possam sofrer oscilações, existindo dias ou semanas piores ou melhores, em função de uma série de fatores que regulam o sistema imunitário e que, na maioria dos casos, nos passam despercebidos.

Percebemos assim que mais do que esforços, más posições ou outras, são alterações do sistema imunitário (semelhantes aos das alergias) que justificam a maioria das dores de costas.

É claro que estas alterações não são suficientes para haver dor: normalmente há também alguma lesão estrutural, mesmo que não se identifiquem com os exames imagiológicos atualmente disponíveis como a ressonância magnética ou a tomografia computorizada, nomeadamente as micro lesões da cartilagem que a expõem ao sistema imunitário e desencadeiam a resposta inflamatória e consequente dor.

Estas lesões podem ser condicionadas por diversos fatores mas, resumidamente, são reflexos dos extremos da nossa vida atual. De um lado, o sedentarismo: uma das piores posições para a coluna é a posição de sentado, porque nesta posição pressionamos a cartilagem dos discos e facetas durante muito tempo, o que dificulta a difusão de nutrientes criando-se fragilidades com consequente rutura da periferia da cartilagem. No outro extremo estão os esforços excessivos, os acidentes e os traumatismos, que podem provocar estas ruturas / fraturas da cartilagem.

Com o avançar da idade, estas lesões vão-se acumulando, não só pela pressão sobre os discos ao longo dos anos e repetição de acidentes, mas também porque, uma vez iniciada a resposta inflamatória, esta vai degradando progressivamente a cartilagem, tentando eliminar este “corpo estranho”.

É por isso comum as alterações serem multi-segmentares, isto é, haver hérnias em vários discos ou facetas alteradas em diversos níveis, porque o que desencadeia todo este processo são forças que afetam toda uma região e não apenas um ponto, o que apresenta desafios à terapêutica, como a obrigatoriedade de tratar toda a região afetada e não apenas uma hérnia ou uma faceta.

Naturalmente que há outras teorias para justificar a elevada prevalência de dor lombar, como aspetos mais mecânicos, relacionadas com a “recente” posição ereta do ser humano que, ainda assim, não é incompatível com a teoria inflamatória (o homem ereto pressiona mais e, consequentemente, afeta mais a cartilagem da coluna do que um quadrúpede). A simples explicação de que uma hérnia comprime um nervo não justifica, contudo, muitas situações que vemos todos os dias, nem a elevada frequência desta doença.

Compreendemos agora como a compreensão dos fatores de risco para a dor de costas e a forma de a prevenirmos não é linear e nem sempre está nas nossas mãos, dada a complexidade do equilíbrio necessário para a evitar. Isto tem profundas implicações terapêuticas, mas isso poderá ser tema para outro artigo.

Miguel Cordeiro (Médico, Neurorradiologista)

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