Nem a ciência, nem a magia conseguiram descomplicar a vida de Marquinhas, a curandeira ribatejana que uma luz mágica libertou das ordens de capataz. Um Belzebu entranhado na cabeça empurrou-a para uma consulta com um médico neurocirurgião

Fixei que era outono e que a tarde começava lenta e vagarosa. À entrada da porta uma jovem senhora, com pele de quem trabalha ao sol, cabelo escuro e olhos tristes, esboçou um sorriso e iniciou um discurso que parecia já ter sido mastigado previamente.

Eu sou a Maria do Mar, mas chamam-me a Marquinhas. Na minha terra dizem que sou a bruxa curandeira. Tenho sabedoria adquirida ao longo da vida e utilizo alguma magia para tratar quem me procura. As pessoas só pagam o que podem, o que querem ou o que entendem que é justo. E olhe, trabalho as mesmas horas, de sol a sol, mas agora já não é um trabalho de campo, duro, pesado, que me rebentava com as costas e, no fim semana, o dinheiro mal chegava para os gastos da casa. Vida dura, tão pouco compreendida e com as mulheres de par a par com os homens e a fazerem o mesmo trabalho, mas a receberem metade do salário.

Antes de ser esta que sou hoje, era a Marquinhas, que trabalhava num campo ribatejano, a sachar, a cavar e a fazer todo o serviço que o capataz determinava.

No fim de um verão, costas dobradas e com uma dor ferrada na zona dos rins, já o sol ia alto, ergo-me um pouco para descansar e de repente fixo o olhar num ponto do firmamento. Pareceu-me ver uma luz muito brilhante, mágica, que também me fitava. Fiquei estática durante uns minutos, sem conseguir articular palavras. As minhas companheiras perguntavam-me se eu me sentia mal, mas eu não conseguia falar. Larguei a enxada, dei meia volta, e nem ouvi o capataz, atónito, a dizer isto e aquilo, ameaçando que se me fosse embora não voltava a trabalhar naquela vinha, que descontava o dia de hoje, e mais umas arrazoadas que mais tarde me contaram.

Naquele dia fiquei com um poder que não tinha até então. Larguei definitivamente o martírio do campo.

O meu marido pensava que me tinha entrado algum Belzebu no corpo. No princípio ainda ralhou, porque agora, único sustento da família, já nem tinha dinheiro para beber um copo com os amigos ao fim de semana. E os vestidos de chita da nossa menina também já estavam a ficar gastos. Mas as coisas foram-se compondo, cresceram as consultas da “bruxa”, e o dinheirinho foi entrando aos poucos.

O Belzebu, pintado de azul, estava a tornar-se um santo. E passámos a viver mais desafogados. Sem a corda ao pescoço. Respeitados. Roupa lavada. Aprendemos palavras mais caras. E na escola diziam que aquela menina calada era filha da dona Marquinhas. E do senhor Manel Louva a Deus. Tudo caminhava demasiado bem até aquela dor de cabeça insuportável. Que agrava com mudança de posição. E tosse. E espirros. É um Belzebu entranhado que eu visiono de cor azul. E a espirrar como os bodes. Maldito. Tá bem ferrado na cabeça. O meu conhecimento não dá para tanto.

Por isso recorro ao Senhor Doutor…

O exame neurológico revelou sinais de gente a mais dentro do crânio. Na realidade, algo não estava bem. Pedido o exame imagiológico confirmou-se que o Belzebu entranhado no cérebro, estava numa zona perigosa e pouco acessível. Não havia muito a fazer. Ciência e magia pouco adiantavam. Apenas pastilhas para alívio temporário da dor.

Dona Marquinhas, a corajosa curandeira, que teve visões e mudou de vida, e ajudou gente simples que acredita em lobisomens, estava numa encruzilhada complicada da vida.

À guisa de conversa relaxante, infra clínica, para desanuviar o estado tenso, criado pelo diagnóstico e, sobretudo, pela falta de esperança na cura, perguntei-lhe se conhecia o unguento do voo original das bruxas. Era uma mezinha de ervas, com extrato de plantas chamados pepinos zombie, com folhas de salgueiro e fuligem das chaminés, tudo misturado com óleo animal ou óleo de cravinho. Desconhecia, mas ficou curiosa.

Juntei à conversa um pouco de ciência medieval e descrevi o ritual em que as bruxas nuas untavam o unguento em várias zonas da pele, bem como o pau da vassoura que cavalgavam. Ora o unguento, que contém um antagonista muscarínico, de um importante neurotransmissor do cérebro, passava à corrente sanguínea através da mucosa dos genitais, em contacto com o pau da vassoura, provocando uma sensação, alucinatória visual, sensação de flutuação e leveza, dando às bruxas a sensação de que podiam voar.

Os efeitos psicoativos da escopolamina, substância em causa, iguais ao rugido de um leão, desaparecem, em doses baixas, num simples colírio, que permite aos oftalmologistas, apenas a dilatação das pupilas para ver melhor o fundo ocular, sem que o doente se sinta a flutuar.

A morte vudu e a criação de zombies estão de certa forma ligadas à ação de substâncias contidas em plantas, conhecidas há milhares de anos e ainda hoje utilizadas em muitos países, como ciência oculta. O ritual e a encenação fazem parte da magia e o resultado obtido depende muito dos praticantes.

O cérebro de cada um de nós, bem como os pensamentos e comportamentos que dele emanam, reagem a alimentos e drogas, permitindo-nos ver coisas que não existem e outras que existem mas ficam deformadas. Este é o efeito alucinatório. E é assim há milhares de anos, com os feiticeiros e gente comum a usaram extratos de plantas e casca de árvores, com misturas alcoólicas, ou apenas queimadas, como o incenso, conseguindo experiências extrassensoriais diversas e estranhas.

Tendo-me ouvido com curiosidade, Marquinhas esboçou um sorriso, e disse-me considerar a hipótese de se escapulir deste mundo sobre o pau de uma vassoura. E se possível, vestida com alguma roupa. Deu-me um abraço e saiu. O olhar misterioso estava lá, mas não consegui perceber se quem saía pela porta era a Marquinhas ou a Maria do Mar.

Raimundo Fernandes (Médico Neurocirurgião)

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