O uso abusivo do telemóvel, com o pescoço em flexão prolongada, ou do computador, com imobilização articular, estão a provocar a degradação dos discos, amortecedores dos corpos ósseos vertebrais, que degeneram em idades cada vez mais jovens…
Duas leis do século XIX, contemporâneas da teoria evolutiva de Darwin, admitiam a hipótese de remodelação óssea, como resposta normal ao esforço fisiológico – lei de Wolf -, e o corolário desta, aplicado aos tecidos moles, músculos, tendões e ligamentos – lei de Davis. A conclusão seria a maior preparação dos tecidos, face à carga que lhes seria imposta. Remodelação óssea progressiva e reajustamento muscular com o esforço.
O inverso das leis também dava resultados reprodutíveis, com perda de massa óssea – osteopenia e osteoporose -, e perda muscular – atrofia – em situações de inatividade, por doença, emprego sedentário, cultura do sofá ou resistência crónica ao exercício físico.
O equilíbrio das forças tem de ser tomado em linha de conta, para evitar as contracturas, roturas ou fraturas dos vários tecidos, com situações anómalas que podem ser dificilmente reparáveis, como as escolioses adquiridas, as deformações articulares permanentes ou o desgaste precoce dos discos intervertebrais nos vários segmentos da coluna.
O estilo de vida dos nossos antepassados, como caçadores recolectores, nómadas em movimento permanente, contrasta com o período pós-revolução industrial dos países mais desenvolvidos ou em vias de desenvolvimento. Houve uma alteração radical do modus vivendi.
O II Renascimento, com as novas e globalmente disseminadas tecnologias digitais, retirou aos jovens adolescentes, da maior parte dos países, a cultura da brincadeira ao ar livre e, aos adultos jovens, trouxe a imposição de trabalhar com um excesso de horas, sentados a uma secretária, com posições rígidas do ráquis, muitas vezes com o pescoço em acento circunflexo sobre o telemóvel, mal compensados com alguma atividade física residual.
A entrada do século XXI trouxe um aumento exponencial da competição na escola e no trabalho, com altos níveis de stress, regulando-se o tempo ao minuto e, por outro lado, desconhecendo que 26% da população total vive menos de 14 anos; que há 800 milhões de desnutridos, 13% não tem acesso a água potável e que existem 1.600 milhões de obesos neste mesmo planeta. O mesmo onde
75% da população tem um telemóvel e, destes, 30% com ligação à internet. E apesar de existirem muitos velhos, apenas 8% da população mundial tem mais de 65 anos, correspondente a ¼ do número total de obesos.
Vou concentrar-me nas posições viciosas da raquis cervical. Mesmo sem sobrecarga física sobre as sete vértebras e os cerca de 30 músculos e ligamentos, as leis de Wolf e Davis aplicam-se a este segmento do esqueleto, tanto na positiva, como na negativa. Isto é, promovendo uma rigidez e inversão da curvatura articular, por contração prolongada, ou por falta de movimento e certo grau de atrofia muscular. As duas situações com dor crónica e degradação dos discos intervertebrais.
A alteração da estrutura dos discos, desde os 25 a 30 anos de idade – induz o aparecimento de uma patologia que, noutras circunstâncias começaria 15 a 20 anos mais tarde. Com estenose medular precoce e risco acrescido de lesões, sobretudo em caso de acidente profissional ou rodoviário. Também as hérnias são cada vez mais frequentes em idades mais jovens e as mielopatias progressivas estão a acontecer, mesmo sem causa aparente.
Apesar da lombalgia crónica constituir o sintoma mais frequente que leva a procurar um médico, o sofrimento agudo ou crónico da medula cervical põe em risco a atividade motora dos membros superiores e inferiores em idades que não seria suposto isso acontecer. As posturas rígidas e prolongadas do segmento cervical, em qualquer idade confirmam as leis da “competência mecânica”, previstas no século XIX e têm plena aplicação no período de grande avanço tecnológico do século XXI.
Dado o grande número de estruturas diferentes que compõe o segmento em causa, os estragos dependem da área atingida, das causas que lhe deram origem, da idade do paciente e das medidas protetoras tomadas. No caso do uso abusivo do telemóvel, com o pescoço em flexão prolongada, ou do computador, com imobilização articular, as consequências mais frequentes são a degradação dos discos, amortecedores dos corpos ósseos vertebrais, que degeneram, alterando a sua estrutura celular.
A perda de água interdiscal diminui o volume do disco e reduz o espaço entre as vértebras, com maior pressão sobre as articulações, induzindo dor e rigidez, com perda de mobilidade do pescoço. E isto pode começar na adolescência, agravando-se nos adultos jovens.
O canal medular, que aloja a medula, torna-se irregular e mais estreito, podendo lesar as estruturas nervosas, medula ou raízes, com compromisso dos membros superiores e/ou inferiores, no caso de lesão medular. Portanto, distúrbios muito sérios ainda em idades jovens, resultantes da má adaptação evolutiva do organismo humano às circunstâncias ambientais, neste caso traduzidos em dor ou défices sensitivos e motores.
Abusando das tecnologias do século XXI, em idades em que antigamente se brincava ao ar livre, se conhecia as flores dos campos e se ouvia o canto dos pássaros, porque não tinham dispositivos móveis nos ouvidos.
Se tivéssemos juventude prolongada como os axolotes, vivendo na forma larvar jovens toda a vida e capazes de rejuvenescer todas as partes do corpo, incluindo a medula, sem deixar cicatriz, nenhum dos nossos jovens teria de se preocupar. Mas os humanos não têm essa capacidade. Nem temos ancestrais de há 450 milhões de anos como os escorpiões, artrópodes engenhosos que, não sendo esquisitos, conseguem estar seis meses sem comer, mas em situações de aperto comem os da sua própria espécie; rejuvenescem a cada muda de carapaça de quitina e quando não apetece às fêmeas parceiro sexual, reproduzem-se por partenogénese, sem contacto com os machos.
Finalmente um piscar de olho aos nossos “primos”, com quem partilhamos mais de
90% do nosso código genético e de quem nos separámos há 7 milhões de anos, chimpanzés e bonobos por um lado e australopithecos por outro. Seguimos noutra direção.
Por volta dos 200 a 100 mil anos instalaram–se em África e, como caçadores recolectores, dispersaram-se lentamente por todo o planeta, a pé, sem comboios, aviões ou telemóveis, mas com cérebros de 1350 cc, onde os 100 mil milhões de neurónios estabeleceram os contactos certos para continuarmos, apesar de tudo. E os que nos precederam, sem se saber porquê, há 30 mil anos estavam praticamente extintos, mas ficaram os bonobos, chimpanzés anões do Congo de lábios vermelhos e cabelo com risco ao meio na cabeça. Em vias de extinção como tudo o que é bom.
Distantes de grande parte dos primatas e visões angélicas sapianescas, as fêmeas arejadas, com uma ancestralidade mais astuta que a nossa, faziam sexo por prazer e não apenas para se reproduzir. O sexo era uma forma de aliviar a tensão e por isso as lutas neste grupo eram em menor número do que nos chimpanzés comuns. Mais ainda, estas fêmeas têm relações homossexuais, guinchando de prazer ao esfregar os apêndices, machos e fêmeas, cada um por seu lado, várias vezes ao dia, para reduzir a tensão e aliviar o stress. E neste grupo, a escolha da fêmea não é pelo alfa, mas sim pelo macho menos rufia. Boas maneiras que a evolução não alterou.
Devíamos aprender com este grupo de campeões que não basta ter um cérebro mais volumoso. É preciso dar-lhe o uso adequado e saber que há alguém que fica mais jovem quando muda de pele, que usa o sexo como forma de prazer e para descontrair ou relaxar a tensão. E que ainda pode regenerar partes do corpo que foram agredidas e ficar jovem toda a vida, mas também que conseguem comunicar sem telemóveis…e sem pescoço com acento circunflexo…
Raimundo Fernandes
(Médico, Neurocirurgião)
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