Há uma fronteira que não divide. Um povo de acima e um povo de abaixo. Um dialeto próprio. Um governo e leis. Tudo numa aldeia com poucas dezenas de habitantes. Fica para lá dos Montes, onde pode estar um “Reino Maravilhoso”, como escreveu Miguel Torga “… começa logo porque fica no cimo de Portugal, como os ninhos”

“O que é preciso, para os ver, é que os olhos não percam a virgindade original diante da realidade, e o coração, depois, não hesite”, porque “”sempre houve e haverá reinos maravilhosos neste mundo”. A frase é de Miguel Torga e Trás-os-Montes, o território por ele homenageado. Foi para lá que fomos, para lá dos Montes, a Terra Fria Transmontana.

Um território cinzento, quando se olha para o mapa de cobertura de rede e dados móveis, porque há fortes probabilidades de as chamadas caírem e de a internet não funcionar. Às vezes, a rede espanhola resolve esta ausência. Ou seja, este também é o sítio para desligar da rede e voltar aos telefones fixos.

Entrar em Trás-os-Montes é sinónimo de desembocar no Parque Natural de Montesinho, reconhecido pela heterogeneidade. Pelas serras que encaixam em vales, a altitudes que variam entre os 1480 e os 430 metros, à beira rio. Ou pelas temperaturas que podem alternar ente os 12 graus negativos e os 40 graus positivos (ou mais).

A natureza impõe-se, mas não foi argumento suficiente para ali se querer ficar, porque esta é também uma das regiões mais despovoadas do país e com maior número de emigrantes. Terá sido este isolamento secular que permitiu guardar as tradições, com todos os hábitos e costumes de outros tempos. Rio de Onor acaba por ser um postal ilustrado desse passado bem guardado. Ganhou visibilidade em 2017, quando a aldeia foi vencedora das “7 maravilhas de Portugal” – na categoria de aldeias em áreas protegidas. E o prémio acabou por lhe dar a projeção e a oportunidade de ter uma segunda vida.

Para além da tipicidade de muitas aldeias do interior português, Rio de Onor reúne uma mão cheia de curiosidades. O número de residentes não aumentou, é certo, mas as pessoas vão lá e querem conhecer. O turismo faz isto. E, a aldeia onde habitualmente reside menos de meia centena de pessoas, acaba por receber cinco mil ou mais por ano. E porquê, o que as atrai?

A aldeia de Rio de Onor é atravessada pela fronteira de Portugal com Espanha, mas esta fronteira acaba por não separar nada. Para quem lá vive, existe apenas o “povo de acima” e o “povo de abaixo”. Ou seja, Rio de Onor e Rihonor de Castilla acabam por ser uma aldeia só. As tradições e o dialeto são comuns. As raridades continuam e é também por ali que pode ouvir falar o rionorez, um dialeto próprio e único, mas que já poucos sabem ou entendem.

Aldeias e costumes guardados à distância de uma viagem de carro em direção ao Norte interior. Parte da identidade portuguesa está ali, em exposição e ao natural, porque é assim que pode encontrar aquele território. Rio de Onor é só um exemplo, há outros, com mais ou menos casas habitadas, tal como Montesinho,

Gimonde ou Guadramil. Rio de Onor teve melhor sorte. Porque se tornou conhecida e afamada. 

Os roteiros passaram a incluir este percurso e a visita à Casa do Touro (com entrada gratuita) ajuda a explicar como se ali vivia há 40 ou 50 anos ou 100 anos. Agora, há uma estrada que leva os visitantes. Há 40, 60 anos, existia um caminho de terra e os 20 quilómetros de distância tinham de ser feitos a pé. Tudo teria de ser resolvido por ali, até os casamentos…

Os hábitos eram comunitários e tudo era de todos, o touro, os rebanhos, as terras, o forno…. As decisões teriam de ser tomadas com o acordo de todos, existiam regras, penalizações e o registo da Vara da Justiça. Ficaram entregues a si próprios e aproveitaram todas as capacidades de sobrevivência inatas à espécie humana, acrescentando-lhe o que melhor pode ter uma boa vizinhança, seja ela portuguesa ou espanhola.

Hoje, a viagem pode ser feita por estrada ou pelos vários trilhos que a Terra Fria desenhou, para percorrer a pé ou de bicicleta e para ficar a conhecer o que se resguardou com o tempo. Garantem que o lobo-ibérico, a corça e o veado ainda ali habitam. Mas afamados mesmo, visíveis e disponíveis para provar estão o azeite, a castanha, o mel, o vinho, a carne e os enchidos, com atributos muito próprios.

Texto: Conceição Abreu

Fotografia: Município de Bragança / Robert van Velze

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