Antes de ser um ato de cura, a medicina foi um ato de prevenção, uma forma de agradecimento pela cura antecipada. Por adiar a morte, por reconfortar o enfermo ou por evitar a doença. Antes da medicina e dos remédios, a espécie humana e os micróbios já conviviam. Sobreviveram ambos

Realmente a medicina preventiva não começou hoje. Começou há milhões de anos. Quando os primeiros humanos procuraram grutas e abrigos para se protegerem, quando construíram instrumentos rudimentares, para se defenderem e quando propagaram instintivamente a espécie, para se reforçarem. Usaram o abrigo e a defesa na luta pela sobrevivência, para aumentarem em número e se tornarem mais fortes. O lema poderia ser fugir à morte ou prolongar a vida. Andar um passo à frente no tempo. Fazer algo, antes que alguma coisa acontecesse. Foi assim o início da medicina preventiva.

Sacerdotes e curandeiros, como barbeiros e ferradores preveniam as maleitas possíveis, ciclos de mal-estar ou tão só o medo da morte com folhas, bolbos, cascas d’árvore e benzeduras. Adivinhar a possibilidade de ser feliz ou pressentir o cântico negro foi sempre um desiderato dos humanos, a partir do momento em que ultrapassaram a consciência do imediato e adquiriram, com a divagação mental, um discernimento intelectual sobre o passado e o futuro.

A medicina foi, porventura, antes de um ato de cura, um ato de prevenção, uma forma de agradecimento pela cura antecipada. Os objetivos podem nunca ser atingidos ou conhecidos e as formas, para atingir os fins, podem ser contraditórias. Por exemplo, passar fome porque não há comida é bem diferente de passar fome para não engordar. E não engordar, tanto pode ser para um gordo, como para um magro. A prevenção aqui pode aplicar-se aos dois, não se sabendo antecipadamente a qual dos dois é mais útil. A forma preventiva não se aplica evidentemente a quem não tem comida. Mas comer pouco e várias vezes, já é uma intenção médica preventiva aplicada aos diabéticos. Podemos retirar deste exemplo, como aplicação geral, que comer pouco e várias vezes é uma norma preventiva para os magros, podendo entender-se como curativa para os gordos.

Por outro lado, se o gordo perdeu o prazer da comida e aquela alegria própria dos ciclotímicos se transforma em tristeza, o preço da prevenção pode pagar-se caro. Como antídoto, a medicina cai na tentação de contribuir com um comprimido para melhorar o humor e outro para baixar o colesterol, que entretanto subiu com o excesso de peso.

Não raramente, esse peso aumenta com os medicamentos e, por causa das dores nas pernas e da dificuldade em conseguir cortar as unhas dos pés, sempre se junta, de vez em quando, um analgésico e umas gotas para dormir melhor. Mas, como a respiração se pode tornar entrecortada durante o sono, tem de se recorrer, por vezes, àquele aparelho pouco confortável de oxigénio, também ele preventivo das consequências drásticas. Se o agora doente fuma para acalmar a ansiedade ou por puro prazer, começa a frequentar cada vez mais locais de diagnóstico. E sem dar conta, verifica que a tensão arterial começou a subir e lá vai mais um comprimido, quando não dois, para controlar uma coisa que nem pesa na barriga. E agora começa o verdadeiro drama da prevenção. Dieta rigorosa para baixar o peso e evitar, ou diminuir, os riscos cardíacos e, eventualmente, a morte precoce.

O primeiro sacrifício será não poder usufruir de uma boa mesa, uma feijoada em família, do cozido à portuguesa às quartas-feiras ou da cabra velha cozida em vinho tinto. Às tantas, até o ar engorda! Portanto, pesar apenas de mês a mês, para evitar aquele calafrio de olhar para o estupor da balança que está sempre contra os gordos. O prazer já começa a ficar abalado e não é pouco. Mais complicado é aquele maldito vício do tabaco, que pesa na carteira e pesa no pulmão. Dizem e comprovam os patologistas, que o pulmão de fumador, cheio de alcatrão, vai ao fundo, quando se mergulha em água. É como se o oxigénio quisesse entrar em casa e não o deixassem. E uma bronquite obstrutiva crónica, no meio de uma gripe vulgar, pode ser pior que passar o cabo das tormentas. Pois, mas um cigarrito acalma e sempre é um prazer, sobretudo depois de uma bela refeição. Claro, mas paga-se caro, se tiver à vista um dos tumores malignos e mais pérfidos que corrói a caixa respiratória. Ah, e cabe aqui dizer que as mulheres do século XXI, que fumam tanto quanto os homens, só não têm cancro da próstata e dos testículos.

Outro prazer que pode ir embora é a diminuição da líbido e outras travessuras ligadas ao sexo, nos hipertensos, que tomam regularmente um ou dois hipotensores, e bem podiam fazer jogging, o suficiente para o controlo de casos moderados.

Mais complicado ainda é a prevenção de coisas imaginadas, como os mitos, as crenças e as doenças que têm um leque muito maior que o nome. O nome habitualmente é curto e a descrição dos sintomas é floreada, cheia de coisas como a cabeça, ora cheia, ora oca. Falta de vontade de fazer o trabalho. Dormir muito mal, mesmo com o comprimido que a vizinha recomendou. Triste, com vontade de chorar.

Os trabalhos domésticos já são um sacrifício. …“Não me apetece viver. Se não arranjo emprego depressa, nem sei o que faço…” E este leque pode prosseguir até à exaustão, sem dar tempo, ou sem lhe darem tempo para aludir a algumas razões plausíveis, porque as coisas começaram lentamente, mas já nem se lembra como começaram. Mas isso pouco interessa. O que interessa é que não está bem. E claro, mesmo sem saber como e porque começou, é impossível sair de um consultório sem um comprimido. Às vezes dois. A juntar aos 7 ou 8 que já estava a tomar para a tensão, a diabetes e o maldito colesterol. E o tempo é implacável. Não anda para trás. Quase sem se saber como, cinco anos depois ainda continua com os mesmos remédios, incluindo aquele do esgotamento. “Nunca me disseram para o interromper e eu fui aviando, a não ser às vezes, em férias, em que dois ou três dias não tomo nada, mas sinto a falta e recomeço. E é assim a vida, e agora ando cheio(a) de dores nas costas e também já tomo remédios para as dores”…

Esta é uma história-tipo de um(a) doente, triado num hospital central, para cirurgia à coluna, afogado em remédios, alguns com 14 ou 15 comprimidos diferentes. Medicados a sintomas e não, muitas vezes, a uma doença específica. Porque a tuberculose, a malária, a brucelose, o panarício, o eczema, as doenças venéreas e muitas outras do léxico comum, têm tratamentos específicos temporais, cuja medicação permanece enquanto dura a doença. Esgota-se no tempo, com a cura.

Os nossos ancestrais, de há milhares de anos, seriam bem menos complicados Temiam os animais selvagens e os deuses. Para os animais selvagens, arranjavam armadilhas e no temor dos deuses, faziam oferendas. Nessa época, a medicina preventiva centrava-se no prometer para evitar e ofertar como forma de agradecimento. Ainda hoje se pratica essa “medicina” em Fátima, Lurdes, e muitos outros lugares de culto. Prevenção, agora como antes, para evitar a doença, adiar a morte ou reconfortar o já enfermo.

Se recuarmos no tempo até há 400 mil anos, quando os Neandertais ocuparam a Europa do Norte, o Médio Oriente e a Península Ibérica, e foram senhores do Planeta durante mais de 50 mil anos, podemos imaginar como estes recolectores nómadas conseguiram sobreviver, sem grandes recursos alimentares, com um desconhecimento total das doenças e das formas de as combater. Antes da medicina e dos remédios. Antes das mutações cerebrais que permitiram a revolução cognitiva 70 a 40 mil aC. Antes das religiões organizadas e dos grandes Impérios. Antes do conhecimento da escrita e do dinheiro. Antes de desenvolverem mais aptidões do que os instintos básicos. Antes de enfrentarem os Sapiens, com cérebros mais evoluídos e maiores, e com melhores ferramentas de sobrevivência. Antes de ouvirem falar de Asclepius e Hipócrates e de terem conhecido Aristóteles, Galileu, Einstein, a bomba atómica, a propriedade privada, o capitalismo, a corrupção e Trump. Pois estes nómadas habitaram a Terra, que já foi o centro do mundo, e depois se revelou andar à volta do Sol e, surpresa das surpresas, conheceram e viajaram pela Europa 30 milénios antes dos atuais Europeus, sem médicos e sem remédios.

Sem dúvida, os médicos e os remédios que tratam os tísicos, os diabéticos, os epiléticos e todos esses nomes feios que o homem de Neandertal não conheceu, são importantes, como são também a sopa, a ginástica, a música, o sexo, a empatia social, a amizade, o amor, os pássaros, as árvores, os rios, os peixes, os oceanos e os astros. Os médicos e os remédios são importantes, sem dúvida, mas é verdade que os humanos habitaram este mesmo espaço durante milhões de anos, dispensando cuidados médicos e sobreviveram. O bacilo da tuberculose, transportado pelo Sapiens para fora de África, desde há mais de 70 mil anos e só identificado como bacilo de Koch no início do século XX, sobreviveu até aos nossos dias e ainda hoje é causador de muitas mortes no Terceiro Mundo.

Humanos e micróbios conviveram e sobreviveram durante milhões de anos. No século XV, com uma população mundial de 500 milhões, 1/3 dos bebés em Inglaterra morria antes do primeiro ano e grande parte não chegava aos 20 anos. As vacinas e a mudança de hábitos, práticas preventivas, iam dando mais resultados à distância do que, muitas vezes, as pilhas de drogas que se atropelam, porque, não podemos esquecer, que são drogas e, como tal, potencialmente letais em função das doses, das misturas com outras drogas e das inadequações para o fim a que se destinam.

Os cuidados médicos e os remédios são um ganho da civilização, mas é necessário não fazer com este conhecimento adquirido o mesmo que o Sapiens está a fazer, continuamente, ao planeta, com os incêndios das florestas, a morte dos oceanos, o aquecimento global progressivo, as indústrias desenfreadas, usando exatamente o mesmo instinto predador, com que há 12 mil anos iniciou a revolução agrícola… sem regras.

Os cuidados médicos e a toma de remédios têm regras e é necessário não as ultrapassar.

O risco está apenas um passo à frente do que é prescrito. Tentar matar todos os sintomas é desconhecer que os tecidos e órgãos estão interligados e o todo pode ser altamente afetado pela morte das partes.

Não se vive eternamente e não se vive bem eternamente, se cada organismo não fizer um esforço para alterar hábitos e preservar as boas práticas, que são fonte de saúde. Mudar hábitos e recorrer à terapêutica preventiva exige esforço, controlo e empenho individual, práticas que aumentam os telómeros cromossómicos e que prolongam o intervalo de saúde, diminuindo o intervalo de doença.

Raimundo Fernandes

(Médico Neurocirurgião)

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