Há um poder escondido na música, seja para doentes com Parkinson, Alzheimer, com alterações genéticas ou em casos de lesão cerebral súbita, como um AVC. A ciência vai continuar a explicar esta evidência, já demonstrada por Ravel, quando compôs “Bolero” ou por Nietzsche, quando improvisava ao piano. Ambos tinham demência e afasia
A música parece resistir ou sobreviver à distorção dos sonhos, às perdas de memória e às distorções da psicose, penetrando nos estados mais profundos da melancolia e loucura. Inúmeros casos de lesão cerebral súbita, como num AVC ou encefalites, ou lesão progressiva, como nos tumores ou demências, podem fazer nascer uma atividade criativa, não reconhecida nem pensada anteriormente, ou manter intacta a capacidade artística existente, apesar do individuo manter a incapacidade de falar fluentemente.
Estudos científicos sugerem que o dano de uma área do cérebro pode, muitas vezes, deixar livre outras áreas, um fenómeno que se chama de “facilitação funcional paradoxal”. A capacidade de compor, escutar ou apreciar música pode manter-se intacta, ou mesmo exacerbada, nas demências neuro degenerativas, com morte neuronal concentrada ou difusa. São disso exemplo, Maurice Ravel, com grave lesão frontotemporal esquerda, e provável demência, com uma afasia semântica – perturbação da linguagem com esquecimento dos factos e discurso vazio -, que compôs o famoso “Bolero” e continuou a compor até à data da sua morte em 1937, após uma cirurgia experimental ao cérebro.
Friedrich Nietzsche, filósofo, poeta e pensador ímpar do séc. XIX, no final da sua vida, com demência, afasia e parcialmente paralisado, continuou a improvisar no piano e este teria sido o último consolo a abandoná-lo. A resposta à música é preservada até uma fase avançada da demência. Não só a preservação, mas também a aparente intensificação das capacidades e sensibilidades musicais. Acreditamos que se pode superar a doença através da música.
O motor químico, que nos permite pensar, tem dois hemisférios, o direito e o esquerdo, que comunicam estre si, através de uma ponte com 250 milhões de conexões, entre um e outro. O hemisfério direito controla a metade esquerda do corpo, e o hemisfério esquerdo a outra metade. Nos destros, o hemisfério esquerdo é o dominante, por conter a área da linguagem, razão porque uma lesão provocada por traumatismo, enfarte, hemorragia, tumor ou outra, conduz à incapacidade de falar e/ ou entender a linguagem. Este hemisfério, mais racional é o responsável pelo pensamento lógico, enquanto o hemisfério direito tem mais importância na atividade criativa e desempenha um papel substitutivo de algumas capacidades cognitivas, perdidas em destruições mais ou menos extensas do hemisfério esquerdo.
Nos últimos 50 mil anos o cérebro não se modificou ao longo do tempo mas, paralelamente ao desenvolvimento assimétrico, a interação entre os dois hemisférios tornou-se mais complexa, servindo a conexão, entre outras coisas, para manter a harmonia do trabalho em conjunto. Normalmente há uma estabilização em cada indivíduo, um equilíbrio entre as forças de excitação e inibição. Mas, se houver uma lesão no hemisfério dominante, o equilíbrio pode alterar-se e ocorrer uma desinibição ou o desencadeamento de poderes percetíveis, associados a áreas funcionais do hemisfério não dominante
Por exemplo, pode ocorrer a emergência de um talento artístico ou musical a seguir a um AVC no hemisfério esquerdo.
A perda de funções cognitivas, por lesão cerebral adquirida, mais ou menos extensa, ou a diminuição congénita por erro de transcrição genética, são compatíveis com níveis de musicalidade excelente, não estando reservado o gosto da música ou a capacidade de execução diretamente relacionado com a inteligência.
Um erro genético, por perda de vinte genes num cromossoma, deu origem a doentes – síndrome de Williams -, com atraso mental, formação facial insólita, deficiências cardíacas e dos grandes vasos, mas com personalidade amistosa e com grande apego musical. Para além da extrema interação social, estes doentes podem tornar-se exímios executantes de música, apesar de não serem capazes de abotoar a camisa ou arrumar o clarinete na respetiva caixa. Por outro lado, doentes com distúrbio do espectro do autismo, inteligentes, incapazes de estabelecer empatia com os outros, podem ser atraídos para a estrutura da música mas, em regra, não se emocionam com ela. Podem atingir elevado nível técnico, mas não entendem porque as pessoas reagem à música e se emocionam.
Talvez tenha sido a música, como ferramenta para despertar sentimentos e emoções, a atividade que preparou os nossos antepassados pré-humanos para a comunicação oral e para a flexibilidade representativa, genuinamente cognitiva, necessária para se transformarem em humanos. Darwin, em “A Origem do Homem e a Seleção Sexual”, concluiu que as notas musicais e o ritmo foram, pela primeira vez, adquiridos pelos progenitores, macho e fêmea, a bem da sedução do sexo oposto. Portanto, os sons musicais tornaram-se firmemente associados a algumas das paixões mais fortes que um animal é capaz de sentir e, consequentemente, são usados instintivamente. Também acreditava Darwin que a música precedeu a fala, como forma de cortejar.
A audição recatada só nos últimos 500 anos se tornou uma atividade para espectadores porque, no passado longínquo, a música incentivando a coesão social, brotava espontaneamente, com participação ativa e envolvimento coletivo, bem ilustrado hoje no cante alentejano.
Reconhecida nos últimos anos a importância dos centros emocionais do cérebro – sistema límbico e cerebelo – no desenvolvimento dos comportamentos musicais, verificou-se cientificamente o aumento anormal do cerebelo nos casos com Síndroma de Williams e um volume subnormal nos distúrbios com espectro de autismo. A hiperatividade destes centros emocionais, fortemente estimulados pela música, leva à libertação de substâncias químicas, sobretudo dopamina que, no centro do sistema de recompensa do cérebro, desempenha um papel importante no prazer e no vício. Os aspetos de recompensa e reforço da audição da música parecem ser mediados por níveis crescentes de dopamina e pela contribuição do cerebelo para a regulação das emoções, através das suas conexões com o lobo frontal, “o centro de cognição mais avançado nos humanos” e o sistema límbico.
Nos primeiros seis meses de vida, o cérebro das crianças é incapaz de distinguir claramente a fonte das informações sensoriais. A visão, a audição e o tacto misturam-se numa representação percetível unitária. As regiões do cérebro são funcionalmente indiferenciadas, mas acabarão por transformar-se no córtex visual, auditivo e sensorial. Os bebés vivem um completo esplendor psicadélico (sem a ajuda de drogas). Nos adultos, os centros de memória e das emoções, são fortemente estimulados com a música, sobretudo no hemisfério direito, e os registos musicais intra-uterinos ou dos primeiros meses de vida, podem ser reavivados após estímulos fortes no cérebro, como por exemplo, epilepsia psicomotora ou enfartes cerebrais.
Recordo um episódio com mais de 50 anos, algures no norte de Moçambique, numa passagem efémera pelo hospital local. Manhã solarenga, num dia que se adivinhava quente e banhado por uma brisa ligeira. O ambiente calmo foi subitamente invadido pelo som surdo, mas rítmico, do malhar de carne sobre o tampo de uma mesa. Bater o bife para o almoço que se avizinhava, era a tarefa da cozinheira que, absorta no trabalho, não se apercebeu do menino, de olhos brilhantes e sorriso rasgado, que começou a dançar ao som monocórdico do batimento, instigado mais pelo ritmo do que pela visão ou cheiro daquilo que sabia não ser a sua refeição. E não parava de saltar e sorrir, embalado pela orquestra de um só instrumento, e saltou, saltou, embevecido, qual duende no meio da floresta.
Episódio inesquecível a que assisti e registei num local especial no meu cérebro, mesmo ao lado da memória que tenho de andar de triciclo aos 2 anos; do buracão que fiz no tambor de feira aos 4 anos e na lagrimita; da harmónica bocal que o pai me deu aos 7 anos e me tornou o menino mais feliz do planeta… Teria tido nessa altura, como agora, libertação de grande quantidade de aminas de prazer, no núcleo accumbens do sistema límbico, fonte do pensamento positivo. É assim que nos podemos sentir bem com a vida, juntando-lhe a música para oxigenar o cérebro. Afinal, a memória e a música, continuam a ser um legado de séculos, que ainda intriga os estudiosos da mente.
Doenças tão variadas como Parkinson, Alzheimer, La Tourette, distúrbios da memória ou da linguagem pós-AVC, alterações genéticas com comportamento antissocial ou híper sociável, podem, através da música, reativar funções inibidas, recuperar controlo emocional e adquirir uma autoestima perdida. A ativação dos centros de prazer, estabelecendo circuitos rápidos entre o sistema límbico, cerebelo e áreas de cognição mais avançada, são um foco de interesse científico atual. Os promissores resultados são hoje pontes de esperança para muitos doentes com distúrbios neurológicos. A audição e a terapia musical revelam-se úteis para ajudar a ultrapassar uma série de problemas psicológicos e neurológicos, sendo um veículo para a criação de vínculos sociais, transformando-se numa marca de identidade pessoal.
O sábio Aristóteles disse: “Os olhos são os órgãos da tentação e os ouvidos os órgãos da instrução”. O sistema auditivo está mais perto das zonas do cérebro que regulam a vida: Dor, Prazer, Motivação e outras Sensações básicas.
(médico neurocirurgião)
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