Não é preciso muito para melhorar a idade funcional, aquela que se adapta à nossa condição emocional e física. Um pequeno empurrão todos os dias e afugentar os preconceitos e os medos. Um carro velho pode ajudar

Estava a atingir a idade da reforma quando resolvi comprar um carro novo. Preto, brilhante, como que a pôr o luto pelo tempo já passado. Talvez a celebrar a entrada na 3ª fase da vida que alguns almejam como gloriosa, receando, contudo, o maior isolamento, a falta de convívio com os amigos habituais de trabalho, as maleitas resultantes da perda do ritmo anterior e a contagem decrescente do tempo que ainda falta. Aquela idade que entra como fator individual de prognóstico, na comparação com os que apenas começaram a envelhecer.

Nessa mesma altura, o meu vizinho, aos 30 e poucos anos, comprou um carro velho, que teria a sua idade. Vermelho, de capota preta, 2CV Citroen, completamente deslumbrante. Talvez de luto pelo antigo dono.

Foi interessante notar – durante o primeiro ano – o ritmo de envelhecimento mais rápido do carro novo e a relativa estabilidade do carro velho, como o velho/a que vai arranjar as unhas e o cabelo todas as semanas. O carro novo já cheio de nódoas negras, inúmeros riscos, e marcas das paredes a caminho da garagem e das amolgadelas, inúmeras, nos locais exíguos de estacionamento. Problemas que o 2 CV, de estatura média e magrinho, não tinha. 

O vizinho não poupava a esforços para o manter – praticamente novinho -. Poucas subidas sem grandes aceleradelas, de resto em terreno plano e a descer, era como dançar uma valsa lenta. O meu vizinho, não se apercebendo que já estava a envelhecer, e eu, ao fim daquele ano de riscos e amolgadelas, cada vez mais consciente que já entrara no grupo dos jarretas, ainda não completamente orientado para outro tipo de vida.

Passados cinco anos, o meu carro novo já tinha andado mais de 100.000 Km, e sem dúvida, envelheceu prematuramente. O sol e a chuva mudaram-lhe a patine, e sem a atenção e carinho que o meu vizinho dava ao carro dele, o carro novo já era velho, bastante mais velho que o resplandecente 2 CV, vermelho vivo, bem tratado e bem cuidado, tendo andado não mais de 10.000 Km.

Propus uma troca, como se um valesse tanto como o outro. E o meu vizinho aceitou… Eu rejuvenesci. Era uma aliança entre dois velhos. Um a tratar do outro. Limpeza semanal como numa ida ao barbeiro. Esforço contido nas subidas. Sorriso e braço levantado ao cruzar-me com algum da mesma espécie. E não há dúvida que dois velhos, mesmo que um não tenha coração, nem pulmões, nem cérebro, podem ajudar-se e alterar a ordem do tempo. Quanto mais atividade um velho tiver que fazer, menor o seu índice de fragilidade. 

A idade cronológica pode contar bastante menos que a idade funcional, resultando esta de coisas tão simples, diariamente, como o agradável entrosamento social, ouvir uma boa música, ler um bom livro, aprender coisas novas, sono calmo sem adicionantes e, todos os dias, saber o que fazer com a memória que tem. Não se preocupar com o que se esqueceu, nem conseguir recuperar todos os dados que gostaria, mas – sem qualquer dúvida – saber o que fazer com a memória que ainda existe. Essa competência já não é só saber o que já viu, leu e vivenciou, é fundamentalmente dar um sentido cognitivo mais apurado, aos registos do sistema límbico, em ligação estreita com as áreas racionais. 

O movimento retarda o tempo e o entrosamento social reforça as ligações neuronais, de forma que os velhos/as gostam de se divertir, divirtam-se, e façam do terço final um elogio de loucuras saudáveis, como vestir-se como muito bem lhes apetecer, sem ser coagidos a andar desta e daquela forma, por causa da idade. E digo-vos, que ter o prazer de guiar um 2 CV, com mudanças ao volante, sem objetos eletrónicos, com janelas de abertura manual, e sem medo de quase nunca ser roubado, é obra que um velho que se preze, se puder, pode tentar. E deixá-lo luzidio, vermelho de capota preta, à beira do Choupal, antes de um passeio de 5 Km, por entre o arvoredo, misturado com os pássaros e as centenas de jovens que diariamente por lá andam.

Não é preciso muito para melhorar a idade funcional, aquela que se adapta à nossa condição emocional e física. Um pequeno empurrão todos os dias e afugentar os preconceitos e os medos. E os velhos e as velhas podem aprender a gostar do resto das suas vidas.

Raimundo Fernandes
(Médico Neurocirurgião)

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