Não havia tempo para engordar e a ocupação do tempo de sobra era inventado por cada grupo. O tempo da Primária foi entremeado com a ajuda a encher morcelas, chouriços e farinheiras, a fazer contas em papel pardo e a aviar. Uma gaita-de-beiços bastou para conhecer a maior felicidade do mundo

Naqueles meus tempos de menino, em pleno coração do Ribatejo, a ida para a escola – por volta dos 7 anos – era a aventura mais esperada por aqueles, como eu, que tinham o privilégio de aprender as letras e os números, fugindo aos trabalhos do campo, que começariam também por volta dessa idade.

A maioria das gentes, naquela vila de 10 mil habitantes, era analfabeta, de recursos muito limitados, vivendo do suor da terra, com trabalhos pesados e ordenados que mal davam para comer. A minha irmã faleceu com 2 anos, antes de eu nascer, de infeção não completamente esclarecida e eu, ao contrário de muitas famílias, acabei por ser o rebento único que beneficiou das poucas economias angariadas pelos maravilhosos pais, que distribuíam o seu trabalho entre os meloais de março a junho, e as vinhas onde trabalhavam por contra de outrem.

Na época dos meloais, ficava durante 3 a 4 meses com a avó Inácia, avó materna, salsicheira, e à data da minha ida para a escola, viúva. Depois da primeira classe, já eu fazia as contas num papel pardo, à moda da avó, com rodas que valiam 10 – era no tempo dos escudos e mil reis – valendo a roda cortada 5 e os riscos, tipo pau de fósforo, que valiam 1. 

Além de ter aprendido a fazer farinheiras, chouriços e morcelas, aviava com uma limpeza, digna de autêntico profissional. A querida avó nunca, mas mesmo nunca ralhou comigo. Aliás, como a mãe Rosa também nunca ralhou comigo. E o pai Zé, o meu ídolo máximo, desde sempre, adorava que eu lesse o livro da segunda classe para ele se derreter deliciado a ouvir.

Não era preciso muito para sermos felizes e eu, além de ter uma infância particularmente especial, fui um felizardo, porque o meu professor no final da Primária, entendeu que eu tinha garra para ir mais longe, e ofereceu graciosamente ao meu pai, a possibilidade de eu continuar a estudar, inicialmente sob controlo seu, até onde tivesse capacidade. Novamente felizardo, porque fui o único da Primária sem possibilidades económicas, a prosseguir os estudos, por iniciativa do professor Faia.

Nos intervalos da escola era o jogo da bola de trapos, num qualquer largo da terra. Todos descalços, para não pisarmos os que não tinham botas. Era a pesca aos ruivacos, na vala que atravessava a vila, onde a mãe Rosa e a avó Inácia iam lavar a roupa. Era a ida ao matadouro, ajudar a Inácia a trazer a carne de porco para o mercado e para casa, onde também se fazia a venda. Era a caça aos pássaros, com a fisga feita com um cuidadoso ramo de oliveira, em forma de forquilha, e as duas tiras velhas de câmara-de-ar apertadas num pedaço de sola, oferecidas pelo sapateiro que vivia casa meias com a avó. Era o jogo do botão à parede, com o “ceroulica” de osso especial, a voar mais longe e que nós chamávamos o botão ganhador. Eram as corridas infatigáveis a jogar à malha, à cabra cega, sempre num rodopio contínuo, que até fazia esquecer a hora de nos sentarmos à mesa.

Sem telemóveis, sem computadores, sem automóveis, sem televisão, e sem ter tempo para engordar. Não havia gordos nesse tempo. E os meninos de 9 anos, já iam aos bailes da vila, ainda de calções, dançar com as meninas de 9 anos, que, por terem escolas sem rapazes, só nos conhecíamos nos bailes.

Sem maldades. Sempre em movimento. Felizes, quase todos. E no inverno, quando a cheia cortava a estrada do campo de 7 Km, para Santarém, os meninos da escola faziam barcos de papel e iam pô-los a navegar à entrada da vila, a anunciar que cada um de nós gostaria que a água descesse depressa, para dar vida novamente aos campos e trabalho aos camponeses.

Eram assim as nossas brincadeiras, com brinquedos que não se compravam nas lojas, feitos por cada um de nós, com tábuas, arcos e pequenos rolamentos, que faziam as delícias dos mais engenhosos.

Em outubro, realizava-se anualmente a feira da Piedade em Santarém. No largo da feira, onde o pai Zé comprou um burro a um cigano, para acarretar os melões na época deles. Íamos de carroça puxada por uma mula, com demora de quase meio dia para chegar à feira. Era um dia de festa, e numa dessas idas, teria eu 7 ou 8 anos, o pai Zé comprou-me uma harmónica bocal – entre os miúdos a vulgar gaita de beiços -, que me deixou totalmente extasiado!!! Fui nesse dia o menino mais feliz do mundo.

Está gravado, perfeitamente, algures no meu cérebro, o momento de intensa felicidade, tendo-me “desunhado” nos períodos seguintes, na tentativa perfeitamente conseguida, sem lições e sem ajudas, a tirar acordes que faziam sentido. Passou a ir comigo para a escola, aproveitando os intervalos, para treinar umas modas e fazer inveja aos meus amigos. E eu tinha muitos amigos. Numa escola onde não havia meninas, também não havia muito motivo para zangas entre os rapazes, e de uma forma geral, os grupos do mesmo ano, eram homogéneos, em termos de socialização, havendo poucos atritos entre nós.

Aprendi nessa altura, que não é preciso muito para se ser feliz e a ocupação do nosso tempo de sobra, era inventado por cada grupo, diariamente, num turbilhão diário de brincadeiras e jogos. A atenção nas aulas era suficiente para ter a escrita em dia, mas o meu restrito grupo de leitura extraescolar, aproveitava para trocar livros e inventar histórias. Foi assim, a correr, o meu tempo espetacular da Primária, entremeado com a ajuda nas contas e no trabalho de encher morcelas, chouriços, e farinheiras, mas nos intervalos, ainda aprendi a tocar – gaita-de-beiços.

Raimundo Fernandes
(Médico, Neurocirurgião)

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