Os mitos são criações ficcionais, de uma época em que os trovões e os raios eram apenas a ira dos Deuses, depois acrescentou-se o vício do sistema de confiança, porque tendemos a confirmar aquilo em que cremos. Fez-se muito com base nestes pressupostos. Hoje, a ciência explica que, biologicamente, homens e mulheres diferem em apenas 5% e que o código genético dos homossexuais é precisamente igual ao dos heterossexuais. O que mudou?

Do ponto de vista biológico, pouca coisa distingue um homem de uma mulher. Na realidade, menos de 5% de diferenças. Tapados com fraldas à nascença, somos iguais. Até o grito do bebé, quando respira pela primeira vez, não permite dizer que é um XX ou XY.

Antes de as hormonas produzirem as maiores alterações externas, os órgãos internos são indistinguíveis. No final, pode dizer-se que a mulher fica mais afetiva e o homem mais egoísta, mas os cérebros com 40 ou 100 biliões de neurónios e triliões de sinapses são também indistinguíveis, no seu formato macro e microscópico. Quer isto dizer que, para desempenhar funções com prevalência cerebral, é antinatural descriminar o género e criar um mito, a não ser por medo da concorrência. Não foi isso que aconteceu. Primeiro, foram invocados os deuses, destacadas muletas da ignorância humana. Depois, a sapiência dos sábios, cujo conservadorismo não podia ofender os deuses. E, finalmente, quando se descodificou o genoma humano e identificou a realidade cromossómica, invocaram-se os velhos dogmas para atribuição dos lugares onde os dois géneros deviam exercer melhor as funções terrenas.

Desde a Grécia antiga, onde não havia úteros nas classes privilegiadas – poetas, filósofos e mercadores – até ao final do século XVIII, o cérebro não era sequer identificado como órgão pensante. As artes e ciências eram quase sempre e exclusivamente do domínio masculino e os lugares de vulto tinham a marca XY.

A divagação mental foi um salto cognitivo adquirido com o maior desenvolvimento do cérebro e, conseguir discernir conscientemente sobre o passado e o futuro, foi um ganho intelectual ampliado com a educação e a cultura. O tratamento diferente de uma camada da sociedade foi uma ideia ficcional muito requintada, para manter as mulheres afastadas do trabalho dos homens, tal como os pretos das competências dos brancos ou os índios do papel preponderante dos colonos…

Os mitos, depois da era da escrita, do aparecimento das religiões e dos grandes impérios, dominaram por completo o que seria a verdade de cada época civilizacional e foi assim até aos nossos dias, quando o sistema educativo continua a ser negado às mulheres do Paquistão ou quando se negava a possibilidade de uma cidadã islâmica conduzir um automóvel na Arábia Saudita ou, tão só, as mulheres da minha terra auferirem mais de metade do salário dos homens.

Os mitos são criações ficcionais, desde o tempo da ignorância total sobre a biologia humana. O que era explicável de forma simples, era assinalado como natural – caçar, procurar abrigo, defesa pessoal, copular – instintos naturais, sem outras ralações. O que ultrapassava a consciência do imediato afigurava-se um mito. Os trovões e os raios eram apenas a ira dos deuses.

As religiões encarregaram-se de ampliar e transportar os mitos até aos nossos dias, mas as florestas ardidas serão mais de criminosos incendiários do que de relâmpagos assassinos. E os mitos são parecidos a alguns anúncios de televisão, repetidos tantas vezes, acabamos por acreditar neles. Ou não.

O psicólogo, premiado com o Nobel da Economia, Daniel Kahneman, estudou as decisões humanas em problemas sociais e económicos da vida quotidiana, identificando os vícios típicos do sistema de confiança. O primeiro vício é que tendemos a confirmar aquilo em que cremos. A partir do momento em que acreditamos em alguma coisa, procuramos alimentar o preconceito com indícios que o reafirmem.

O vício do mecanismo de decisão observa-se na educação, política, justiça e banalidades da vida diária.

Indulgência nos mais atraentes, nos mais simpáticos ou simplesmente naqueles com que o decisor mais se identifica. Num julgamento recente, um juiz do Porto, ao julgar um caso grave de violência doméstica, em que o agressor agride barbaramente a sua ex-companheira com um moca de pregos, opta por atribuir uma pena leve ao réu, com o qual, de certa forma se identifica, e invoca na sentença uma lei do século XIX, para plasmar em ata que a mulher adúltera, pretensamente a agredida, poderia ter sido espancada até à morte. Ora, a mente tacanha do decisor, qual arauto da inquisição – minimizando a acusação de violência doméstica – incorre no vício do sistema de confiança do cérebro, colocando-se no papel do agressor/vítima, ainda que o julgamento tenha sido para reparar as ofensas da agredida.

No início do século XIX, em algumas zonas de França e da Alemanha, foram usados instrumentos de mutilação para condenados de adultério, vagabundos e blasfemadores.

Desde os arrancadores de seio, com tenazes de pontas afiadas, até aos alicates (em frio ou aquecidos), o seu uso tinha como principal objetivo a castração.

Com alguma imaginação poderiam invocar-se aquelas leis, que não têm assim tantos séculos, para fazer justiça àqueles com que alguns juízes mais se identificam. Se recuarmos um pouco mais, a 1776 a.C., ao código de leis da Babilónia, onde a vida de uma mulher plebeia valia metade do olho de um plebeu, o juiz do Porto poderia arranjar forma de o agressor ser indemnizado.

Ao lado do mito junte-se a crença e, em particular a convicção de que a homossexualidade seria uma doença, uma ideia que durou até finais do século XX. Mas, esta seria também uma doença particular, porque excluía o “doente” de exercer uma função pública, tal como uma determinada filiação partidária impediu muitos cidadãos da minha terra de serem funcionários públicos, num passado muito recente.

Alan Turing, prodigioso matemático e investigador inglês, cérebro privilegiado no iniciar da computação e da inteligência artificial, descodificou as mensagens criptadas da Alemanha nazi durante a II Guerra Mundial, tendo com isso encurtado – em cerca de 2 anos – o final e o desfecho da guerra. Elementos do seu restrito grupo de trabalho, conhecedores da sua orientação sexual, alertaram-no para manter o segredo, em virtude de as leis inglesas não permitirem, à data, conservar o seu posto de trabalho na universidade, sendo homossexual.

Não foi isso que fez, Turing assumiu a sua homossexualidade publicamente e submeteu-se à castração química para não ser preso e isto aconteceu no final da primeira metade do século passado, há pouco mais de 60 anos. Perante a dor, cometeu suicídio aos 41 anos de idade. Face a uma onda de clamor mundial, houve um pedido de desculpas público do Primeiro-ministro inglês em 2009 e, em 2013, foi concedido um perdão real da Rainha Isabel II, pela condenação por homossexualidade.

A homossexualidade que levou Turing a cometer suicídio, ainda é considerada doença pela Igreja Católica, excluindo os candidatos com essa orientação sexual do acesso ao sacerdócio. Crenças e mitos no seio da Igreja, que impedem os homossexuais de serem padres e as mulheres de terem o seu rebanho de paroquianos.

Aqui fica um registo – eventualmente pouco conhecido – de que o par 23 do cromossoma humano, definidor da identidade sexual, pode sofrer mutações, acontecendo as alterações mais espantosas. O sexo feminino deveria ter (e tem na sua maioria) um par de cromossomas X (par XX) e numa fase mutante ter 5, 4 ou 3 cromossomas X (XIS) e, paradoxalmente, ser substituído por um par XY.

Da mesma forma, o sexo masculino pode ter no par XY uma anomalia do tipo XXY (0,2% dos machos) e, raramente, mas podendo acontecer, ter apenas um par XX (par cromossómico sexual, típico do sexo feminino). Já nem a descodificação do código genético é suficiente para identificar o que é masculino e o que é feminino. Terá de se adaptar na Igreja o código do Manual das Forças Armadas, em que os mancebos se apresentavam perante as chefias militares como vieram ao mundo. Na realidade, essa é a única forma de determinar o género biológico, sendo que o volume dos órgãos diferenciadores tem pouca influência na escolha do apuramento para a carreira militar ou eclesiástica.

Para avaliar a complexidade das mutações, estima-se que 400 mil franceses sejam portadores de alterações no par 23 do cromossoma humano. Também deve dar que pensar que apenas uma célula, de entre os triliões de células do nosso organismo, transviada por raios cósmicos, raios X ou outras influências externas, desate a crescer e a multiplicar-se incessantemente, matando as que estão à sua volta, ganhando autonomia própria e que, por vezes, só morre com a morte da própria pessoa.

Basta uma célula se desviar e o que era regular passa a irregular muito rapidamente. As mutações genéticas podem ocorrer em idênticas situações na célula cardíaca, hepática, cerebral ou outra, transviada do seio do seu grupo habitual.

Outra informação que é importante reter é que o código genético dos homossexuais é precisamente igual ao dos heterossexuais. As hormonas produzidas no sexo masculino ou feminino não têm a mínima influência na orientação sexual. E, para os que insistem na determinação cromossómica, poderão ser surpreendidos quando encontrarem um heterossexual masculino com dois cromossomas X ou XXY, sem debilidade mental.

Eu, como heterossexual masculino, de orientação e carreira, não entendo, nem nunca entendi, que o sexo ou a orientação sexual pudessem ser discriminatórios em relação a quem ocupa lugares, para os quais as únicas credenciais exigidas deveriam ser, apenas, a competência, a qualificação e a ausência total de pressupostos com a etiqueta de crenças e mitos.

Raimundo Fernandes

(Médico, Neurocirurgião)

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