Se, no passado, a palavra dada era a maior riqueza dos homens honrados, 800 anos depois, o cigano António perpetuava uma estranha forma de agradecimento e, em vez de oferecer um cabaz de ovos, ou um ganso vivo, este cigano de raça oferecia-me a vida dos filhos como penhor da vida que lhe prolonguei e, sobretudo, da amizade que ele sentiu…
Diz a História que Egas Moniz, aio e tutor do jovem Afonso, que viria a ser o primeiro rei de Portugal, se apresentou em Toledo com mulher e filhos, de corda ao pescoço e descalços, como forma de resgatar a palavra empenhada perante Afonso VII, rei de Leão e Castela.
Durante o cerco de Guimarães, pelas tropas de Afonso VII, para que Afonso Henriques prestasse vassalagem ao seu primo, o intermediário Egas Moniz asseverou ao rei de Castela que o jovem aspirante ao trono acordava no pedido, e o cerco foi levantado. Só que a palavra não só não foi respeitada, como depois, o nosso futuro rei invadiu a Galiza e venceu as tropas do seu primo.
Estas beligerâncias foram comuns antes do início da dinastia e prolongaram-se no tempo mas, nesta história específica, Egas Moniz teve a honra e a coragem de, na defesa da palavra dada, colocar a sua vida e a da família à disposição do rei vizinho que, magnânimo, o deixou ir em paz, após interferência da sua corte nesse sentido.
É um episódio, lendário ou não, do qual retiramos, em pleno século XII, uma lição de humildade, sentimento de honra pelo empenho da palavra e condescendência do detentor do poder.
O tempo nem sempre foi um bom conselheiro e, passados tantos séculos, assistimos hoje, em pleno século XXI e a caminho da inteligência artificial, à esponja vergonhosa da história por um beligerante narcisista, que no maior barril de pólvora do globo, decide autoritariamente rasgar a palavra de seu antecessor e incendiar um povo com tochas da sua democracia, num território que não é o seu. Ignóbil…
Avançamos oito séculos e relato aqui o caso verídico do meu doente António, um cigano gigante de quase dois metros de altura que, há alguns anos, me apareceu em consulta hospitalar, para decisão de processo pendente que trazia de outro hospital.
“Dotôrê”, e este trato era acompanhado por um sorriso rasgado. O seu colega disse que eu tinha uma “coisa” na cabeça, e eu cá perguntei se era uma “coisa boa” ou uma “coisa má”. Ele disse que a “coisa” não era da sua especialidade, e não sabia se era boa ou má, e por isso me mandava para o “Dotôrê”. E aqui estou eu. António, sorridente, com um ar simpático, de carta e radiografias na mão.
Antes de o examinar e ver os exames (imagens), disse-lhe que pelo seu ar não me parecia uma “coisa” má, mostrando-lhe um sorriso de boa disposição e iniciando uma conversa circunstancial sobre o que fazia, o número de filhos que tinha, os países por onde andara, que línguas é que dominava e outras minudências que se afastavam da “coisa” que o trazia à consulta.
A razão da dor de cabeça e do ataque epilético era um tumor cerebral, num local de difícil acesso.
Antes de explicar, com linguagem inteligível, todos aqueles pormenores que os cirurgiões, na hora da verdade, tanta dificuldade encontram, para falar de mortalidade e morbilidade e taxas de sucesso, riscos operatórios e tratamentos alternativos ou complementares e aqueles números estatísticos que ninguém entende: o ar não pode ser muito sério, o sobrolho não pode ser carregado, a voz não pode ser hesitante e, sobretudo, nunca deve começar por uma mensagem negativa.
Resolvi começar a explicação da seguinte forma: António, a “coisa” é um oligodendroglioma.
Outro sorriso ainda maior e o já meu amigo cigano retorquiu: Ah “Dotôrê” assim é que é falare. Atão o seu colega a dizer que era uma coisa e afinal é “isso”. Muito bem dito. É atão bom ou mau?
Se for operado é bom e se não for é mau.
Atão vamos pelo lado bom. E assim se decidiu a operação de António, com uma empatia bem conseguida naquela consulta hospitalar, sem o drama das estatísticas.
Antes da alta hospitalar, no pós-operatório, o mui agradecido António colocou um ar solene que ainda não lhe vira e pediu uma audiência a sós para me dizer que todo o préstimo, auxílio e sacrifício que eu precisasse no futuro, o que quer que fosse, bastava um simples acenar de cabeça, para que o pedido fosse satisfeito.
Esta era a forma de agradecimento que ele entendia pela sua vida suspensa nas minhas mãos e que eu recuperara, e pela amizade sincera que ele sentiu durantes as consultas e estadia hospitalar. Oferecia-me de novo a sua vida, se eu precisasse do seu auxílio em qualquer altura crítica, no futuro.
Uma forma estranha e sincera de agradecimento.
Cerca de três anos depois, telefona-me de Porto Rico, como dizia, em viagem de negócios, pedindo-me para agendar uma consulta na próxima época de Natal, já regressado das suas andanças nómadas por terras da América do Sul.
Em dia aprazado, numa manhã de quinta-feira de Dezembro, apareceu-me o sorridente gigante, com três filhos jovens pré adultos e a mulher. Fez-me uma festa, como se eu fosse elemento da sua família.
“Dotôrê” trouxe os mocetões comigo para lhe dizer que se eu morrer e o senhor precisar de alguma coisa, qualquer coisa, mesmo daquelas que nem lhe passam pela cabeça, tem aqui três mocetões que tomarão os seus pedidos como ordens, obedecendo-lhe cegamente como eu o faria.
Em vez de me oferecer um cabaz de ovos, ou um ganso vivo, este cigano de raça oferecia-me a vida dos filhos como penhor da vida que lhe prolonguei e, sobretudo, da amizade que ele sentiu. Um gesto generoso de agradecimento, que mais parece do século XII, onde a palavra era a maior riqueza dos homens honrados.
Durante mais oito anos, sempre que voltava das suas incursões pela América do Sul ou de África, o gigante e leal António vinha visitar-me, continuando a mostrar o seu reconhecimento pela atenção que tive com a sua doença e consigo próprio. Um caso raro de lealdade. Uma amostra de como é possível ultrapassar a explicação pré-cirúrgica, criando um clima de empatia entre o médico e o doente.
Humanizar a Medicina é uma forma de honrar a palavra dada no Juramento de Hipócrates.
Raimundo Fernandes
(Médico, Neurocirurgião)
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