Um dia em Jerusalém junto do Muro das Lamentações um sefardita perguntou-me se eu era judeu. Num impulso, respondi-lhe que sim! Não esperando a pergunta seguinte. Quem era judeu, o teu pai ou a tua mãe?

A minha mãe era profundamente cristã e eu não tive coragem de a confessar judia, por isso disse-lhe que era o meu pai. De imediato fui convidado, educadamente, a sair de junto do Muro ouvindo “só és judeu se a tua mãe for judia”.

Felizmente quase todas as crianças conhecem a sua mãe mas certamente alguns chamarão pai a quem não lhe doou genes. Há casos destes na literatura e na vida real. A paternidade “coletiva” é ainda  praticada em diversas culturas humanas atuais, por exemplo entre os índios Bari que acreditam que uma criança não é produzida pelo esperma de um só homem. Cumprindo esta ideologia, uma boa progenitora deverá ter relações com homens diferentes, pois assim o filho poderá gozar de uma maior variedade de qualidades, transmitidas pelos diferentes progenitores.

Um dia no Serviço Médico à Periferia recebi numa consulta um jovem casal com uma criança: uma senhora muito bonita e reservada, com um senhor vaidoso da sua mulher e babado com o filho. Traziam um conjunto de análises, requisitadas por um outro Colega e pediram-me que as observasse. O pai pertencia ao grupo sanguíneo 0, a mãe grupo 0 e a criança ao grupo A. Nunca me senti tão embaraçado. Em segundos devo ter tido mais cores do que o arco íris… pensei que deveria referir um possível erro, mas disse que a hemoglobina estava bem, que a glicémia era normal e que o ph da urina era neutro. Dobrei as análises e devolvi-as num instante. Acho que está  tudo bem… Ainda hoje, tenho dificuldade em analisar os exames de que os doentes são portadores!

Muitas e variadas histórias podem ser contadas sobre as transfusões e os grupos sanguíneos, desde que no século XV o Papa Inocêncio VIII foi transfusionado com o sangue de três jovens e que por essa dádiva terão recebido cada um, um ducado. Sucessos e insucessos foram relatados de forma empírica, até que em 1901, o imunologista Karl Lansteiner descobriu as células vermelhas dos grupos AB0 e mais tarde o grupo AB. A primeira transfusão precedida de provas de compatibilidade foi realizada em 1907, por Reuben Ottenber, mas só com as necessidades impostas pela Primeira Grande Guerra é que estas se tornaram rotina. Em 1932 é criado em  Leninegrado o conceito de centros de armazenamento de sangue, que só mais tarde, em 1936, é posto em prática em Barcelona, durante a Guerra Civil. Mas é em Chicago, que o termo Banco de Sangue surge no Cook County Hospital, desde início com sangue doado, por gestos de solidariedade e não raras vezes de amor para salvar vidas.

O cientista Lansteiner, 40 anos depois, ainda teve oportunidade de identificar o factor Rh, dando novo e inestimável contributo para o futuro das transfusões seguras, onde fazem cumprir integralmente o seu melhor objetivo que é salvar vidas, ou mesmo aliviar o sofrimento.

Dar sangue é naturalmente um ato solidário e de respeito para com aqueles que dele necessitam. Dar sangue é um gesto de enorme humanidade e de amor.

O debate entre os adeptos da “comuna ancestral” e os da “monogamia eterna” continuam a influenciar não só a nossa sexualidade, mas também os nossos nomes. Em Portugal, o nome do pai que acredita sê-lo, é o último sobrenome da criança, em Espanha o último é o sobrenome da mãe, esta sabe-se quem é!

Não voltei o encontrar o jovem casal nem a criança mas acredito que as dificuldades emergentes do conhecimento do grupo sanguíneo, tenham sido ultrapassados pelo amor aquele “filho”.

António Travassos

(médico oftalmologista)

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