A modificação fundamental deu-se no interior da caixa craniana, mas a evolução da espécie foi mais longe e desde as harmoniosas curvas da coluna lombar, passando pela formação do queixo ou a aquisição das glândulas sudoríparas ajudaram a construir o que somos hoje. Depois, o inesperado também aconteceu, principalmente, quando começámos a utilizar o sal e os açúcares rápidos

Em meados do século XIX, Charles Darwin e Russel Wallace publicaram uma nova teoria evolutiva, detalhada no livro de Darwin, “A Origem das Espécies”. Fundamentava-se a teoria na seleção natural, conceito que só foi aceite quase 100 anos depois, à beira do conhecimento sobre genética molecular e sequenciamento do ADN, que deu a Francis Crick e James Watson o Prémio Nobel da Medicina.

A seleção natural determinaria a sobrevivência do mais apto, o apuramento das qualidades mais adequadas às exigências das tarefas que cada um iria encontrar e, em última análise, transmitia as modificações à descendência. Este seria o princípio. Se tomarmos apenas o exemplo dos primatas, verificamos que a existência da complexidade nas interações sociais teria sido uma força importante da “seleção natural”, para a expansão do cérebro deste grupo, de que fazemos parte.

Aumentar as relações sociais para aumentar o sucesso reprodutivo. Cria-se, assim, um mecanismo de retroalimentação próprio. Como o consumo energético do cérebro é muito alto, tanto na fase de crescimento como na fase de manutenção, as pressões seletivas, para cérebros maiores, só podem ser satisfeitas se o ambiente fornecer a energia suficiente. Entra aqui uma variável mais relacionada com a dieta, do que as relações sociais ou capacidades cognitivas.

Um acontecimento chave desta teoria teria sido uma modificação acentuada do clima, há sete milhões de anos, que levou os macacóides, com quem partilhamos mais de 90% do nosso código genético, a abandonar a floresta por falta de alimento e procurar na savana a energia necessária à sua sobrevivência, esgravatando “USOS” – Underground Storage Organs – e iniciar uma dieta com mais proteínas, dos pequenos roedores e insetos, que passaram a fazer parte do menu.

Talvez a primeira grande adaptação à marcha mais alargada tenha acontecido com os hominídeos macacos africanos, sahelanthropus tchadensis e ardipithecus ramidus que, ao descerem das árvores, adotaram a marcha bípede, que lhes permitiria ver mais longe durante a marcha e despender menos energia durante as longas caminhadas à procura de alimento.

Mãos livres

Por volta dos 6 milhões de anos, dá-se a separação dos chimpanzés, em chimpanzés comuns e bonobos por um lado, e australopithecus por outro. Australopithecus dos quais se conheceram várias espécies, com cérebros maiores, da ordem dos 450 cc, e postura progressivamente bípede até ao abandono das árvores. Sem dúvida a primeira grande modificação, adotada por todo o género

homo-homem, pessoa -, habilis, erectus, afarensis, que se disseminaram de África, o berço da sua aparição, para a Europa, Ásia, Américas e Austrália, foi a adoção da marcha bípede, deixando as mãos livres para outras tarefas.

Comparando o homo habilis, desde há 2,9 milhões de anos até ao sapiens, entre 200 e 100 mil anos, a modificação fundamental ocorreu no interior da caixa craniana, mas inúmeras adaptações foram-se operando. A nível do segmento superior, a conformação mais arredondada do crânio com o forâmen occipital em posição vertical, na parte postero inferior da caixa, alinhado com o ráquis cervical, sete vértebras e os calcanhares, de forma a estar de pé sem oscilar.

Em vez da peça rígida cervicodorsolombar, as harmoniosas curvaturas, anterior cervical, posterior dorsal e novamente anterior lombar, permitem o equilíbrio sobre a bacia que suporta todo o peso do volumoso conteúdo crânio toraco abdominal. Simultaneamente, o género homo ganhou o queixo, ao perder o focinho, e todo o aparelho bucofaríngeo se modificou com a laringe em posição vertical, permitindo uma inúmera variedade de sons que construíram uma linguagem muito especial.

Dado que a alimentação passou a ser diferente, os dentes também se adaptaram, com caninos mais pequenos, permitindo a lateralidade dos maxilares e molares mais adaptados à mastigação da carne. Também o aparelho digestivo encolheu, por ser menos solicitado, e não roubar a energia que o cérebro consome – 20% do total de glicose e oxigénio -, e permitir assim que os 100 mil milhões de neurónios não fossem afetados.

Arrefecimento rápido do corpo

Ainda na divergência com os símios de há 6 milhões de anos, os membros inferiores ficaram mais longos e os superiores mais curtos, com oponência dos polegares nas mãos, permitindo a construção de instrumentos e atirar pedras com precisão, ou lanças, ou o manuseamento de paus, tão úteis na caça, permitindo uma sobrevivência sustentada na busca de alimento e na defesa contra outros predadores. Para a corrida, sobretudo de longa distância, o equilíbrio em extensão do joelho, a planta do pé arqueada e a dorsiflexão plantar foram outras adaptações que o género a que pertencemos adquiriu, melhorando a performance do desempenho nas mais diversas áreas físicas.

O fogo, nos últimos 500 mil a 1 milhão de anos foi outra adaptação notável dos nossos ascendentes, permitindo maior eficiência na digestão dos alimentos cozidos com menor consumo energético e tempo despendido, sendo o trabalho ocupado com outras tarefas.

A aquisição de glândulas sudoríparas, que fazem o arrefecimento rápido do corpo em tempo de calor, foi outra modificação que alguns dos muitos genes inativos operaram, codificando a informação, transmitida à descendência e que, pela sua utilidade, permaneceu. 

Claro, em situações inesperadas, com o começo da utilização do sal e dos açúcares rápidos, parte dos organismos humanos não conseguiram a adaptação desejada, e a hipertensão e a diabetes foram as consequências óbvias. Doenças crónicas, por falta de adaptação ao meio, transmitidas geneticamente à descendência, como a obesidade por excesso da utilização de açúcares rápidos. Aqui, genes inativos, dos 20 a 30 mil dos existentes no género humano, não atuaram em muitos sapiens para impedir a generalização da falta de adaptação humana ao meio ambiente.

Raimundo Fernandes
(Médico, Neurocirurgião)

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