Durante muitos séculos, filósofos, médicos, escritores, feiticeiros e sociedade anónima pronunciaram-se sobre epiléticos e essa estranha manifestação repetitiva, amaldiçoada por uns e temida por quase todos.


Tida como doença sagrada ou dos “possuídos de espíritos” desde a antiga Grécia, onde o termo epilepsia teve a raiz, foi descrita pelo filósofo, epilético, Aristóteles, como doença capaz de aumentar a atividade cerebral, podendo exaltar e desenvolver capacidades naturais. Foi o primeiro a referir que a epilepsia e o génio estavam frequentemente ligados.

Mais de vinte séculos depois, Freud sugeriu, num ensaio sobre o romance do século XIX – Os Irmãos Karamazov – que a epilepsia de Dostoiévski era um sintoma da sua neurose, podendo ser classificada como histeroepilepsia, portanto um caso de natureza psicológica e não fisiológica. Acreditava também que a condição epilética era incompatível com um grande intelecto, porque estava associada à deterioração da performance mental. Duas mentes brilhantes filosofando sobre probabilidades, sem que um e outro tenham podido demonstrar as suas teses.

Tanto as ciências exatas, como a medicina, tiveram ao longo dos tempos, verdades sempre contestadas, mas igualmente sempre aceites, enquanto a evidência, resultante da investigação, não lançou luz sobre a nova ou definitiva verdade.

Da aceitação cega da tradição científica, herdada da sabedoria grega, passou-se ao questionamento sistemático e a revolução científica, de meados do século XVI e que se prolongou pelos seguintes, quase custou a cabeça a Galileu, mas marcou a rutura com os conceitos de Aristóteles sobre a conceção do universo. O pensamento do filósofo grego resistiu dezassete séculos.

No campo da medicina, e reportando-nos exclusivamente à epilepsia, o obscurantismo dominou mais tempo e, só em meados do século XIX, a epilepsia passou a ser considerada doença neurológica e não psiquiátrica. Hughlings Jackson, neurologista britânico, estudou a fisiologia do cérebro de epiléticos, tendo chegado à conclusão que a descarga elétrica síncrona neuronal era a base das respostas variadas, motoras, neuro sensoriais ou psíquicas, ocorridas naqueles doentes.

À data do ensaio de Freud, ainda não era possível o registo gráfico da crise por eletroencefalograma, e daí o eminente psiquiatra e grande investigador da mente humana não ter conseguido provar a sua tese. Mas fez-nos refletir, à raiz do conhecimento atual sobre o seguinte: a crise epilética, qualquer que seja a sua forma de apresentação pode ser simulada.

A perda de sentidos e as convulsões não serem mais de que uma crise histérica ou simples simulação, como numa cena cinematográfica. E isto é verdade, para qualquer doença, cujos sintomas não possam ser testados – dores, movimentos anormais, paralisias, etc. Mas hoje há formas fidedignas, não só do registo gráfico das crises, como da identificação das causas que podem desencadear a perturbação cerebral. E isto não era possível demonstrar no tempo de Dostoiévski, em pleno século XIX e muito menos 300 anos antes de Cristo, no tempo de Aristóteles. Só que Aristóteles intuiu filosoficamente o que veio a confirmar-se – a doença exaltar e desenvolver capacidades naturais e o génio e a doença estarem frequentemente ligados. São exemplo disso Alexandre, o Grande, Constantino e Napoleão; Leonardo da Vinci, Newton e Alfred Nobel; Paganini, Tchaikovsky e Robert Schumann; Shakespeare, Charles Dickens, Dostoiévski e Agatha Christie; Miguel Ângelo e Van Gogh, para só nomear alguns.

Freud não tinha razão quanto à epilepsia de Dostoiévski, nem quanto à incapacidade de os doentes poderem manter alta performance mental. Porque não identificada no século XIX, a epilepsia temporal ou psicomotora, refiro as duas mentes com performances brilhantes, Van Gogh e Dostoiévski, portadores deste tipo de epilepsia, complicada, no final das suas vidas e com crises generalizadas.

Estes dois exemplos servirão, sobretudo, para conhecimento da sociedade anónima, dentro da qual este tipo de epilepsia pode passar incógnito, nunca diagnosticado, ou mal diagnosticado e, sobretudo, nunca ou mal tratado.

Imaginemos um tremor de terra, cujo epicentro é o Rossio em Lisboa; antes do sismógrafo registar os abalos sísmicos, ouve-se um ruído estranho como o rugido de um leão. Seguidamente, as casas começam a abanar, sem ruírem e, tão depressa como começou, o fenómeno sísmico desapareceu. Do outro lado do rio, em Almada ou em Loures, o fenómeno passou despercebido. Mas, pouco tempo depois, o quadro repetiu-se, agora com mais intensidade, com destruição de algumas casas no centro da cidade, e ainda não sentido nas terras das imediações.

A epilepsia temporal, assim chamada por se iniciar num foco localizado no lobo temporal, bem próximo da área da memória e das emoções, poderá manifestar-se sem se estender às zonas vizinhas, como os dois primeiros quadros do sismo.

A crise de grande mal, com perda de sentidos e convulsões, resultante de uma descarga elétrica difusa em todo o cérebro, é um quadro parecido ao terramoto de 1755. Estende-se às áreas circundantes, mesmo que tenha começado num ponto determinado.

A epilepsia temporal, com características muito específicas, foi magistralmente descrita por Dostoiévski, que a sentiu desde tenra idade. As personagens principais, autobiográficas, Myshkin no romance “O Idiota”, e Smerdyakov em “Os Irmãos Karamazov”, eram epiléticos, e, como já acontecera antes nas peças de Shakespeare, os autores reportaram a sua própria experiência.

As crises de Dostoiévski teriam começado por volta dos 9 anos. Inicia-se o quadro com uma sensação estranha de que algo vai acontecer, dificuldade em encontrar as palavras, abertura da boca sem propósito, movimentos rítmicos dos dedos e depois uma sensação de êxtase com imensa felicidade, incapaz de ser vivenciada em circunstâncias normais. Dizia ele que daria dez anos da sua vida para reviver com mais frequência aquele prazer, inexcedível e incontrolável. Por volta dos 25 anos, começa a ter crises, em que apesar da aura – período que antecede a crise – perde os sentidos e algumas vezes tinha convulsões – observadas e descritas pela sua segunda mulher Anna Grigorevna, sobretudo à noite.

As crises psicomotoras, designadas hoje parciais simples ou parciais complexas, sem ou com perda de sentidos, caracterizam-se sobretudo por perturbações relacionadas com a proximidade do foco irritativo do sistema límbico.

Em plena atividade normal, um jovem a conversar com os amigos, de repente fica perturbado, com o olhar vago, fazendo movimentos com os lábios, sem conseguir falar, movimentos desordenados com os dedos, movimentos de mastigação e, após dois a três minutos, pode retomar a conversa anterior, um pouco confuso, sem saber o que ocorreu.

Quando há perda transitória de sentidos, pode notar sonolência e amnésia total para o que ocorreu. Alguns têm a sensação que vai acontecer algo – a aura – e notam um cheiro estranho, habitualmente couro queimado, ou que não sabem definir, um gosto igualmente estranho, alucinações auditivas ou visuais, com a audição de uma música completa ou um trecho que a mãe cantou quando era bebé e ainda ver uma cena qualquer que, na realidade, nunca existiu. É comum o aumento do ritmo cardíaco, sudação, ereção dos pelos, mal-estar epigástrico e outras.

Uma das causas mais comuns é um traumatismo durante o parto, condicionando uma cicatriz na área interna do lobo temporal e que funciona como “espinha”, que aumenta desordenadamente a atividade elétrica cerebral nessa zona.

As convulsões febris, sem infeção evidente, comum nos jovens, e que se interrompem por volta dos 7 a 9 anos, devem ser consideradas como potenciais indutores deste tipo de epilepsia. Há outras causas, relacionadas com doenças gerais – tumores cerebrais, encefalites ou meningites, malformações vasculares, acidentes vasculares cerebrais, traumatismos, etc -que podem alterar a atividade cerebral, levando-nos à conclusão que um cidadão normal, com um cérebro sem qualquer alteração estrutural, é potencialmente epilético.

Van Gogh, começou a pintar aos 27 anos, e nas inúmeras cartas que escreveu ao irmão mais novo, Theo, dava-lhe conta das alucinações visuais e auditivas da aura, com uma sensação de grande felicidade, da confusão mental após as crises e da necessidade obsessiva de pintar, na busca da cor que desse vida à imagem que tinha dentro da sua cabeça. Nos últimos anos, antes do suicídio, aos 37 anos, começou a abusar do absinto, dizia ele para o acalmar, e começou a ter crises com perda de sentidos e convulsões. Numa crise alucinatória, e durante uma discussão acesa com Gauguin, ameaçou o amigo com uma navalha de barba e, perante a fuga deste, cortou a orelha esquerda e foi oferecê-la a Rachel, a sua prostituta preferida. Nos três dias seguintes manteve-se em contínuas crises alucinatórias e, antes de ser internado, não se lembrava de nada do que tinha acontecido. Só não conseguia pintar nos dias seguintes às crises convulsivas.

Há um padrão comum na personalidade dos epiléticos psicomotores, que se traduz num rigor ético excessivo, hiperespiritualidade, hipergrafismo e escrita circular, alternância de humor, motivação excessiva no trabalho, disfunção sexual com hiper ou hipo sexualidade.

Lembro apenas que os brometos, única droga existente no século XIX para a epilepsia, só aparecem em 1850. Os primeiros antiepiléticos apareceram nos anos 30 do século XX e a cirurgia da epilepsia temporal é dos finais do século XX.

As mentes brilhantes, nas diferentes áreas das ciências, da literatura e das artes, tinham tratamentos placebos ou nenhuns, e muitos casos, não mencionados, teriam tido grave perturbação da memória e das emoções. Cuidado, sociedade anónima, com o que pode parecer perturbação psicológica e ser manifestação psíquica de um foco irritativo no lobo temporal.

Esta não é mais uma doença sagrada, nem de “possuídos de espíritos”, é uma disfunção elétrica do sistema nervoso central, portanto uma doença neurológica, tratável medicamente e, nalguns casos, cirurgicamente.

Raimundo Fernandes

(médico, neurocirurgião)

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