É uma viagem, com bilhete de ida e volta ou só de ida. A tecnologia e o saber do século XXI trouxeram esperança a este “sono profundo”, mas também a possibilidade de qualquer um fazer planos quanto à morte ou à forma como quer enfrentar este tipo de situação. A escolha será feita em consciência e deverá ficar escrita num documento que vai alterar o tratamento, mas também o curso da vida. Trazemos histórias com um final feliz, mas também as dúvidas que devem ser colocadas. O testamento vital não pode ser só uma assinatura, exige conhecimento

Nas artérias enferrujadas de um cérebro tão brilhante como o de José Cardoso Pires, instalou-se um coágulo enegrecido com o sarro escuro do tabaco e provocou, numa manhã de Fevereiro de 1995, uma fuga de ideias do escritor para um desfiladeiro íngreme, sem fundo.

O seu corpo desmaterializou-se, e o seu “eu”, por mais estranho que lhe parecesse, não era ele nem outro. O outro ainda reconheceu a sua mulher e companheira, distante, já em fuga, e, antes de rumar ao hospital penteou-se com a escova dos dentes. Nos primeiros dias, sob vigilância médica, viajou por terras onde as coisas não faziam grande sentido, as vozes e as pessoas eram almas de outro mundo, as palavras eram indecifráveis e o outro não era ELE, mas também não deixava de ser. Viajante num sonho que ouvia vozes e não conhecia os rostos. Ouvia palavras e não conhecia o sentido. Registava impressões e esquecia-as no momento seguinte.

José, num tributo à equipa de serviços médicos que o acompanhou, não regateou a gratidão que sentiu e escreveu, dois anos depois do acidente cerebral, belíssimas palavras que intitulou “De Profundis, Valsa Lenta”. O cérebro privilegiado que escreveu anos antes “Balada da Praia dos Cães”, readquiriu, como registou João Lobo Antunes no prefácio de “Valsa Lenta”, uma recuperação provavelmente mais devido à alegria e positividade do doente, do que ao efeito da medicação instituída.

O lobo frontal do hemisfério esquerdo de Cardoso Pires, temporariamente privado de oxigénio, reduziu drasticamente o seu metabolismo na área da linguagem, provocando no doente uma afasia, que o impediu temporariamente, não só de falar, como de ter conhecimento do significado das palavras.

A alteração do seu estado de consciência, no período a seguir ao enfarte cerebral, induziu em erro a imprensa oficial, que difundiu o diagnóstico de morte cerebral, no pressuposto de que morte cerebral seria igual à perda da função de uma área do cérebro. Ora a morte cerebral é um estado de coma irreversível, absolutamente sem retorno, que não foi felizmente o quadro clínico do escritor.

Na morte cerebral não há, podemos dizer, vida no cérebro. A atividade elétrica neuronal está ausente e as funções cardíacas e pulmonares são mantidas artificialmente, com meios externos de suporte. O coma de um doente em morte cerebral não permite qualquer tipo de resposta voluntária ou reflexa, sendo por esse facto, o estado comatoso mais profundo e, como tal, a antecâmara da morte.

No século VII a.C., Asclépio, Pai da Medicina, herói e Deus da Grécia antiga, não conhecia a morte cerebral. O “Koma” da Grécia antiga era um termo que significava sono profundo, tão profundo que, sem conhecimento e meios de o combater, desse sono não era possível sair. Portanto, nesse período, a antecâmara da morte era sempre o “sono profundo”.

Num coma menos profundo, em que há alguma atividade cerebral, é sempre possível reverter o quadro clínico, numa percentagem tanto maior quanto menor for a afetação do estado de consciência. José sobreviveu e o cérebro permitiu que continuasse a escrever de forma brilhante. Porque ele acreditou e confiou na medicina dos finais do século XX, bem diferente da que servia os portugueses das Descobertas, que morriam, no século XVI, em coma induzido, por défices vitamínicos, como a pelagra e o escorbuto.

A neurocientista americana, Jill Bolte Taylor, em Dezembro de 1996 e aos 37 anos de idade, sofreu uma grave hemorragia cerebral no hemisfério esquerdo e, dez anos depois, publicou a experiência do tempo em que navegou de um hemisfério para o outro, na busca da imagem perdida, sem nunca perder a esperança de o conseguir. O best seller “My stroke of Insight”, foi publicado em 30 línguas e é fonte de inspiração para tantos que viajaram pela zona quase interdita entre a luz e a sombra, e nunca souberam explicar, por palavras ou gestos, os caminhos desconhecidos que trilharam.

A cirurgia para remoção do volumoso coágulo e da malformação vascular sobre uma área tão eloquente do lobo frontal esquerdo, como a área da linguagem, apenas serviu para evitar danos maiores, como o aumento do volume dentro de um crânio fechado, e sobretudo, que a dita malformação voltasse a romper. A recuperação centrou-se na reativação do hemisfério direito e na positividade e perseverança do doente, que foi substituindo o racional pelo instintivo e criou um equilíbrio novo entre os dois hemisférios, roubando alguma dominância àquele a quem se atribui o planeamento do futuro.

Nós temos consciência e conhecimento de nós próprios e do meio exterior, apenas enquanto as células cerebrais estiverem ativas e os neurónios, num entrelaçado de ligações contínuas, mantiverem os sistemas de alerta num moto-contínuo, apenas alternando entre o sono e a vigília. Durante o sono, o consumo de oxigénio, fundamental ao trabalho celular, é normal mas, no coma, o metabolismo altera-se substancialmente, razão porque as situações de isquemia – por falta de sangue, ou anoxia – por falta de oxigénio -, constituem, no limite, o substrato da perda da função celular.

O cérebro não é eterno. Não continua ativo para além da morte. E quando se trata de morte cerebral, quer dizer-se tão-somente que o cérebro interrompeu definitivamente as suas funções, sem retorno, mas outros órgãos, como o coração e os pulmões, mantêm-se transitoriamente ativos e à custa de suporte externo, por máquinas elaboradas em pleno século XX.

No tempo de D. Afonso Henriques, ou na época dos Descobrimentos, não havia qualquer hipótese de se falar em morte cerebral. A morte simplesmente ocorria com a morte do cérebro. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, como disse José Mário Branco, e hoje, regulamentados pela lei, podemos fazer planos quanto à morte, ou à forma como queremos enfrentar situações difíceis. Qualquer um, em vida e em plena consciência, tem a possibilidade de escolher que cuidados de saúde quer ter, ou não, caso venha a sofrer uma doença grave. Neste testamento vital, há explicitamente referência a situações como: “Inconsciência por doença neurológica ou psiquiátrica irreversível”; “doença incurável em fase terminal”, etc…

Não vou discutir a lei em vigor nesta matéria, nem os direitos dos cidadãos decidirem pela orientação que entenderem dar à sua vida, num momento em que não tenham capacidade física ou mental para o fazer. Nem tão pouco os direitos de familiares fazerem cumprir a vontade do constituinte, expressa num documento oficial. Nem o direito de objeção de consciência do médico que assiste o doente nessa fase crítica.

Pretendo sim informar/alertar para algumas situações em que o doente se pode encontrar numa urgência hospitalar, sem poder decidir naquele momento e por vontade própria, se quer continuar a jornada, entregue à ciência, à religião, aos dois ou a nenhum. E, para isso, nada melhor do que conhecer em vida, em plena consciência, o percurso perigoso que pode encontrar, em qualquer idade, como resultado da falência de um órgão, de uma agressão, uma queda, um despiste ou até um simples descuido, como beber sentado até não ser capaz de se levantar ou, se for diabético e não comer durante umas horas, ou simplesmente, se um dia adormecer à lareira com as portas fechadas.

As causas são inúmeras, algumas com bilhete de volta, e outras com bilhete de ida, sem possibilidade de retorno. Imaginemos hoje, em pleno século XXI, o que acontece numa urgência hospitalar:

Doente encontrado inanimado, caído à beira da estrada e transportado pelo INEM, que entretanto lhe fizera reanimação cardiorrespiratória. Em estado comatoso e já em pleno serviço hospitalar, a orientação clínica é feita sob consentimento presumido. A equipa médica vai proceder, segundo o que entende ser a melhor prática, com tratamento médico ou cirúrgico, sem possibilidade de interferência familiar ou outra. Bem diferente da situação em que um doente, plenamente consciente, depois de devidamente informado, pode recusar qualquer tipo de tratamento, por direito próprio e sem que, por isso, possa ser penalizado.

Se este mesmo doente, diabético e alcoólico, encontrado caído à beira da estrada, e levado à urgência hospitalar nas circunstâncias atrás referidas, fez um testamento vital não pode existir consentimento presumido e, inclusivamente, o estudo da causa do coma pode ser interrompido por um familiar, um advogado ou outro.

Enquanto o cérebro tiver sangue, oxigénio e glicose, tão fundamentais ao seu funcionamento, é necessário que os cidadãos, antes de qualquer testamento, sobretudo o vital, se informem sobre os direitos e deveres num consentimento informado e presumido.

Conhecer os direitos que têm num atendimento de urgência hospitalar. Saber que circunstâncias são essas em que não se pode decidir sobre o tratamento de uma doença que antecipadamente não se conhece. Saber ainda que direitos têm os familiares de interferir na orientação clínica de um doente, inconsciente e assistido numa urgência hospitalar, mas também conhecer os fundamentos básicos dos diversos tipos de coma possíveis e da importância de atuação no prognóstico. Decididamente, assinar um documento que pode alterar, mais do que o tratamento, o curso da vida, só deve ser feito quando houver um conhecimento mais preciso sobre todas as circunstâncias envolventes.

Raimundo Fernandes

(médico, neurocirurgião)

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